26 dezembro 2013

Concurso de escrita criativa

O desafio para esta semana era: Escreva a carta de amor mais ridícula do mundo (máximo: 400 palavras).

Aqui vai a minha contribuição. 

JdB


***


Prezada Lucília,
Espero que esta te encontre de saúde, que nós por cá todos bem.
Guardo dentro de mim o que me faltou sair. Sou uma junta vedante de sentimentos, uma caixa hermética de onde não sai o ar comprimido que agitará a nossa relação. Sou um cárter entupido por falta de jeito, um amor em circuito fechado, sem trocas de calor com o exterior. Sou um coração adiabático, dir-se-ia.
Aqui, no remanso da manutenção na fábrica onde trabalho, tudo me recorda de ti. Nas patolas de um empilhador que segue lento e forte vislumbro os teus braços que avançam. Nas gambiarras que iluminam as entranhas dos motores vejo os teus seios tremeluzentes de esplendor. Passo as mãos pelas colunas que suportam estruturas de aço, certo de estar a tactear-te as coxas que me apertam sem retorno. Os sensores de presença que me protegem de máquinas em movimento são os teus olhos azuis, vigilantes numa reconfortante permanência.
És a fábrica do meu amor, do meu afecto, da minha ternura. És a minha usina, a minha linha de produção, a minha ausência de improdutividade.
Os equipamentos trabalham a cadências certas; os pistões sobem e descem uivando satisfação, gemendo prazer. Aqui e ali param, gritando avarias, solicitando cuidados, ansiando atenções. Em tudo te vejo, em tudo te imagino, em tudo te sinto. Em tudo toco, certo de que uma biela é um braço, um cabo eléctrico é um fio de cabelo, uma válvula é uma boca que me beija, me morde, me sussurra.
Quedo-me de olhos fechados ouvindo os ruídos da instalação: detecto assimetrias vibratórias, identifico excesso de decibéis, rearranjo protectores sonoros. És tu, és tu, és tu! Tudo são as tuas palavras, os teus pedidos, as frases com que me incendeias, e para esse fogo não há extintor adequado.
Prezada Lucília,  
O que é uma nave central se não o teu corpo? O que é um centro de comando se não o teu coração? O que é o meu contrato de trabalho se não o pacto que me liga a ti, sem feriados nem acordos colectivos de trabalho? O que é tudo isto se não fores tudo tu?
Oiço-te, sinto-te, incluo-te nesta manutenção preventiva com que protejo o que me é querido: uma rotuladora, uma máquina de soldar, um sorriso ou um nariz estreito.
Beijo-te com o mesmo esmero com que limpo uma bomba de vácuo.

Amílcar, o teu engenheiro-chefe.

2 comentários:

Anónimo disse...

o busílis é que de ridicula nada tem... magnífica carta de amor, belissima paixão em dose industrial.

arit netoj disse...

Que carta mais ridícula! Conseguiu mesmo o objetivo, parabéns!
Beijinhos

Acerca de mim

Arquivo do blogue