Na contagem decrescente
para o Natal, os tempos de crise têm a pequena vantagem de puxar menos pelo
frenesim dos presentes e dos preparativos consumistas, dando-nos mais folga
para saborear a magia da quadra, onde
a solidariedade entra na ordem do dia.
No Porto, a Câmara
lançou-se numa iniciativa bem original, abrindo o Museu Soares dos Reis para um
encontro (a 6 de Dez.) onde os oradores foram os sem-abrigo. A ideia partiu da réplica
de dois participantes, num Seminário realizado a 20 de Abril, sobre interajuda,
em que sugeriram a uma das funcionárias municipais presentes que ouvisse os sem-abrigos,
se queria intervenções realistas e compreensíveis!
A partir da queixa,
indirecta, a Câmara resolveu levar o desafio a sério e organizar um evento que
desse voz aos mais desfavorecidos. Curiosamente, estes preferiram focar-se na
arte, e nem tanto no rol de reivindicações e protestos que, legitimamente,
poderiam ter acumulado! Até nisso, deram uma grande lição ao país, onde tantos
– com muito menos motivos – quase só sabem usar os microfones para reclamar e
exigir financiamentos (do erário público, claro).
O principal Museu portuense
era o local certo para reunir toda a cidade. O mote foi «Uma vida como a arte: existimos, somos pessoas». O convite foi
distribuído pelos sem-abrigo, nos dias antes, oferecendo flores de papel a quem
passava! Muito poético, corajoso e comovente, vindo de quem sobrevive a custo!
Seguindo o percurso
interior que os 3 Tempos ensinaram ao forreta do velhinho Scrooge, na noite de
Natal, também a humildade e a urgência em reavaliar a nossa vida entram na
ordem do dia.
Desta vez, a lição
chega-nos pelo sr. nespresso, George Clooney, no filme do mexicano Alfonso
Cuarón – «GRAVIDADE»(1).
Contracenando com Sandra
Bullock, somos atirados para a estratosfera, mergulhando na escuridão silenciosa
e avassaladora da galáxia. Operários de luxo, os dois astronautas-mecânicos de
naves e sondas, entregam a sua vida (mesmo!) para concertar um equipamento com
falhas técnicas chatas. O mais pequeno esforço para apertar um parafuso ou,
simplesmente, respirar a milhares de kms da terra, vira uma façanha.
O realizador faz-nos acompanhar
cada segundo de toda aquela acrobacia espacial, partilhando a tenacidade e
bravura dos dois, que Clooney tenta aliviar com piadas de esplanada, mas sem
perder o fito da sua vigilância exigentíssima. Tornando simples e,
aparentemente, comezinha, a grandeza do seu cargo de sentinela, em local tão
inóspito, George vela pela sobrevivência dos dois com o rigor de um militar,
mas a pureza cândida das crianças que se contentam em viver intensamente o
presente saboreando a vida, além da enorme humildade de quem se limita a
cumprir a sua obrigação. Ainda que seja uma questão de vida ou de morte… Mas nada
de poses melodramáticas ou sequer heróicas! Nenhuma bravata nos gestos mais radicais
e magnânimos. Nenhuma voz dura ou punitiva, por as suas ordens não terem sido
devidamente acatadas, com consequências trágicas. Nenhuma intervenção mais acalorada
nas investidas titânicas para transmitir ânimo e gosto pela vida à pessoa que lhe
estava confiada. Nenhum desabafo pesado, na hora derradeira, para além de meras
observações sobre a paisagem soberba, embora letal, nas profundezas da via
láctea, a uma altitude irrespirável.
Tudo prosaico e
despojado, como se a missão fosse de somenos e ele até fosse um rapaz desengraçado, a quem fizessem falta olhos azúis e outros atributos que lhe
permitissem distinguir-se no meio de uma multidão (e das grandes; nada abaixo
da escala chinesa, s.f.f.)…
Em cenário de ficção
científica, a história trata, afinal, da mais elementar, embora prioritária, das
preocupações humanas: o sentido da existência e o lugar de cada um no universo
afectivo, antes mesmo de o localizar na geografia do cosmos. Por isso, ninguém
ali é suposto armar em herói ou extravasar a circunstância do comum dos
mortais, valendo as personagens enquanto porta-vozes de qualquer um de nós. Daí
o papel atribuído a Clooney, um habitué neste perfil das gentes mais anónimas
do planeta, “apenas” ávido de passar boas dicas ao próximo, sobretudo por um testemunho
magnânimo e modesto. Numa das tiradas transmitidas à recém estreada médica
espacial, exasperada de lutar pela vida, consegue incutir-lhe fôlego para
tentar sobreviver: «I get it, it's nice up here. You could just shut
down all the systems, turn down all the lights, just close your eyes and tune
out everyone. There's nobody up here that can hurt you. It's safe. What's the
point of going on? What's the point of living? Your kid died, it doesn't get
any rougher than that. It's still a matter of what you do now. If you decide to
go then you just gotta get on with it. Sit back, enjoy the ride, you gotta
plant both your feet on the ground and start living life. Hey, Ryan, it's
time to go home.» Aliás, a presença de
um par de vozes, naquele cenário de silêncio petrificante, resultou no melhor
estímulo para a astronauta recusar o circuito de desespero a que tinha cedido e
bater-se pelo regresso a casa. A chegada ao areal que se cola à pele de
Bullock, depois de mergulhar no magnífico lago Powell, lembra o gosto especial
da vida humana, testemunhada por um dos anjos, no filme soberbo de Wim Wenders
– «Asas do Desejo».
Como assume o realizador
de GRAVIDADE, em resposta às observações de um astrofísico americano sobre as
pequenas incorrecções visuais do filme: «Tentámos
ser tão precisos quanto podíamos, no âmbito da nossa ficção. Mas, no fundo,
esta ficção é uma viagem emocional, mais do que qualquer outra coisa».
No Porto, os preparativos
do Natal foram ainda mais longe, procurando chegar a todos, bem ao modo do
convite que chegou aos párias da sociedade judaica, que pastoreavam junto a um
povoado das franjas do Império Romano – Belém.
Em Lisboa, a Via da
Alegria promete ajudar-nos a entrar no espírito da época, na tarde do Sábado,
21 de Dezembro, descendo do Príncipe Real (concentração às 15h45) para o Chiado (www.presepionacidade.org).
Algures no espaço, George
Clooney é inspirador, até mesmo por causa do desafio interior que o Natal nos
lança.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
_____________
(1) FICHA TÉCNICA
Título
original:
|
GRAVITY
|
Título traduzido
em Portugal:
|
GRAVIDADE
|
Realização:
|
Alfonson Cuarón
(mexicano)
|
Argumento:
|
Alfonso
Cuarón e Jonas Cuarón
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Produzido por:
|
Warner Bros. Pictures
|
Director de Fotografia:
|
Emannuel
Lubezki
|
Banda sonora:
|
Steven Price
(que colaborou no “Senhor dos Anéis”)
|
Duração:
|
91 min.
|
Ano:
|
2013
|
País:
|
EUA
|
Elenco:
|
Sandra Bullock (astronaut-médica
Ryan Stone)
George Clooney (astronauta Matt Kowaski)
Ed Harris
(posto de controle da Nasa, em
voz-off)
Orto Ignatiussen (voz de chinês interceptada no rádio de uma das naves)
Phaldut Sharma e Amy Warren (mais vozes
apanhadas no rádio)
Sasher Savage (voz do comandante da estação
espacial russa)
|
Locais das filmagens:
|
Lago Powell, Arizona,
abóbada celeste.
|
Site oficial:
|
http://www. /
|
Um
dos 3 filmes mais vistos do ano.
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