O'Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada...)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O'Neill!)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse...
Por estes dias, um amigo acabou de pintar o meu retrato a óleo, naquilo que é uma série de retratos de amigos. Eu fui o primeiro, porque entre mim e ele se tinha falado de estatutos e ele quis pintar-me, como me disse com humor, enquanto homem sem. Voltou a pintar-me, insatisfeito com a primeira versão.
Durante meia dúzia de horas repartidas, enquanto ouvíamos música clássica e falávamos pouco, ele pintou-me como me viu - que é, ou pode ser, diferente de ter-me pintado como eu sou. "Senta-te como te apetecer". E eu sentei-me como me apeteceu, para descanso do físico e dos olhos. Ao contrário da primeira versão, e da versão de mais três amigos, não olho para ele. Olho para o lado, para uma mancha verde de árvores que não identifico, para descortinar ao fundo, onde fixo o olhar, uma palmeira-leque. Há ainda casas em redor mas já não quero lá chegar, a menos que visse pessoas sobre as quais imaginar histórias, fragilidades, motivos de tristeza ou alegria.
Retratou-me com um ar sério, grave, talvez contemplativo ou pensador. Sem estatuto e sem sorriso, digo-lhe eu por brincadeira. Mas com intensidade, profundidade e reflexão, responde-me ele com genuína amabilidade. Um primeiro olhar sobre este retrato revela parecenças e dessemelhanças. Os olhos isto, a barba aquilo, a boca ou o nariz não sei o quê. Tudo depende da mestria do pintor ou da forma como ele entendeu-me pintar-me, fruto de opções ou limitações. Mas, no fundo, o que eu gostava era que aquele retrato revelasse quem eu sou: o que dizem os olhos (uma frase já batida, que provoca lágrimas em todos os que com ela se confrontam), para onde olham eles ou com que intensidade o fazem; que passado está naquelas rugas pintadas, no sulco da pele, no jogo de sombras, num cabelo ainda forte mas já muito branco.
Em O Enigma da Chegada (V. S. Naipaul) que acabei de ler, o "senhor da mansão" diz à empregada: "Só um pouco de formalidade. É tudo o que peço. Uma bebida não é apenas uma bebida. É uma ocasião." Uma bebida pode ser apenas uma bebida, como um retrato pode ser um interruptor, uma bicicleta ou um prato de cerâmica pintado por mãos artesãs - vemos a técnica, a precisão do traço, o jogo suave das cores. Mas um retrato pode ser uma ocasião (e nessa ocasião intervêm a classe do pintor e a vontade do observador): quem é o retratado, no que pensa, o que revela aquela expressão, ou o que nos diz o facto de olhar para o pintor ou para uma Licuala Grandis escondida na linha do horizonte?
Quem sou eu, retratado ali naquela tela? Poderia ter-me rido, ter-me voltado para outro lado, ter aberto os olhos como quem quer ver tudo daquele momento em frente, ou daquele espaço para a frente. A minha escolha obedeceu a critérios de conforto, pois já sofro do esqueleto. O desafiante é ver mais além do retrato enquanto retrato, vislumbrar, numa opção só aparentemente ergonómica, uma opção de vida ou uma atitude perante a vida. Por isso, talvez os meus olhos semi-cerrados não revelem cansaço decorrente de uma noite mal dormida, apenas visão focada numa qualquer distância que só eu sei; por isso, talvez o ar sério não revele gravitas, apenas um homem que se tornou maçador.
JdB
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