Na Quarta passada, uma multidão acorreu ao Chiado para ouvir o testemunho poderoso e luminoso de uma mulher que viveu sob as bombas, na Síria. E escapou para contar a sua experiência e deixar alertas ao Ocidente rico, com um pedido: parem a guerra e repensem na vida oca e frívola que levam.
Concretizou: se querem acabar com a fábrica de fazer refugiados, parem a guerra; suspendam a venda de armas e o apoio aos mercenários estrangeiros que estão a destruir a Síria. A Irmã Guadalupe explicou, com desassombro, que era puro logro mediático falar em «guerra civil» num conflito que fora planeado, com frieza e calculismo, num gabinete longínquo (pareceu referir-se ao Ocidente ou, pelo menos, também o envolver), para depois ser levado a cabo por milícias estrangeiras, falsamente apresentadas como «oposição moderada local». Disse mais: a esmagadora maioria dos sírios não quer derrubar o Governo, menos ainda ficar nas mãos dos meliantes que invadiram a Síria para retalhar um país próspero, moderado e atípico na turbulência do Médio Oriente.
Nascida na Argentina, a Irmã Guadalupe entrou para a Ordem do Verbo Encarnado, que faz questão de ir para onde ninguém quer. Há uns cinco anos, tinha pedido licença de transferência para um país calmo da bacia do Mediterrâneo, enquanto recuperava de um problema de saúde. Sugeriu a Síria por ser um paraíso de tranquilidade e ordem, prosperidade e excelente coabitação entre muçulmanos e cristãos, como fora o Líbano há três décadas. Assim, foi colocada na capital dos negócios e das melhores universidades: Alepo. Ironicamente, poucos meses depois, as fronteiras sírias tornaram-se um passador de guerrilheiros sem escrúpulos e radicais, armados até aos dentes, pagos ou simplesmente doutrinados para pôr o país a ferro e fogo.
Contou, em seguida, como aquele povo corajoso e cordato aguentou e continua a aguentar cinco anos de rajadas de metralhadoras, mísseis, petardos, falta de víveres, água reduzida a uma vez por semana, luz eléctrica duas horas por dia! Chegam a procurar folhas nas árvores para improvisar sopas. Conseguiram reaprender a viver. Diz a Irmã que aquela onda de violência reconduziu-os ao sentido da vida. Exemplificou com fotografias de magotes de gente nova de ar divertido e exuberante. Eram do centro universitário junto à catedral de Alepo, recentemente atingida por um míssil. Comentava: acreditem que estes sorrisos não são resultado do photoshop, apesar de provirem de um bairro cristão, que são os alvos preferidos destas milícias assanhadas. A guerra trouxe-lhes uma alegria tranquila e profunda, porque experimentam o valor espantoso de cada instante! Quando saem de casa, despedem-se sem saber se já só se revêem no céu. Mas a perspectiva do céu não lhes retira vitalidade. Antes aviva-lhes a vontade de seguir em frente. Por isso se casam, com o pequeno pormenor de a igreja já não ter tecto e as paredes estarem descarnadas… Claro que dispensam o aparato dispendioso que hoje se associa ao casamento, distorcendo o sentido daquele acto. Neste campo, deixou ainda o alerta contra o ambiente artificialmente facilitado e híper protegido em que os pais hoje educam, deixando os mais novos impreparados para o futuro. Sim, casam-se apaixonadíssimos e pouco tempo depois já estão separados. Mira, qué ha passado? Que te ha detto que la vida era fácil?
Na Síria, ainda arranjam tempo e energia para levar os estudos até ao fim. Contou a história divertida e eloquente ocorrida minutos depois de tocar o aviso de retirada imediata da cidade, com a chegada iminente do terrífico Daesh. Cada um agarrou na bagagem de sobrevivência para se fazer à estrada. Nisto, uma Irmã vê uma estudante voltar atrás a apanhar os apontamentos, insólitos num kit de primeiras necessidades. Esclarece-a logo a universitária: se sobrevivermos, Irmã, tenho exame já na próxima Segunda e conto ir! Por isso não se estranha a fotografia de uma recém-licenciada em medicina, esfusiante a mostrar o diploma da licenciatura feita nos cinco anos de bombardeios.
Há dias, em Madrid, espantara-se com a proibição de haver presépios em lugares públicos. Esa es vuestra libertad religiosa? Qué pasa con la democracia en el occidente? Desdobrou-se em exemplos sobre o perigo do politicamente correcto em que nos afogámos, já com a expressão religiosa acantonada na clandestinidade e a liberdade individual quartada em vários aspectos. A descrição da nossa sociedade aproximou-se demasiado da antevisão descrita por George Orwell em «1984». Aliás, o autor britânico clarificou numa entrevista que aquele retrato da ditadura de mentalidades não se inspirara especificamente na União Soviética, mas no seu país. Isto, já em 1949…
Convidou-nos a assumir a fé com maior desassombro, a libertar-nos do frenesim tonto e basicamente materialista em que nos deixamos enredar, para recuperar o que é vital, o que conta realmente. Basta o essencial, na vida! Se morrermos nos próximos minutos, o que gostaríamos de ter feito ou dito? Reparem que nenhum rico, nenhum poderoso consegue acrescentar um segundo, sequer, à existência. Nisto, os sírios tornaram-se excelentes mestres de vida. Nas notas finais, lembrou o site da AIS (Ajuda à Igreja que Sofre), onde este noticiário diferente está ao nosso alcance: www.fundacao-ais.pt. Agora que nos aproximamos do Natal: como será viver aquela Noite Santa ao som de bombas e sob as labaredas das explosões? A Irmã explicou que estas milícias são mais encarniçadas nas festas cristãs: no 25 de Dezembro e na Páscoa.
Nos antípodas destes guerrilheiros fundamentalistas, está a maioria dos muçulmanos sírios citados pela monja argentina, que lhe desabafaram estarem muito preocupados com o desaparecimento dos cristãos, pois são eles quem mais alimenta a cultura e as universidades sírias, além de serem os guardiães de valores únicos e fundamentais à sociedade– à cabeça, o perdão (sic)!
Vem o perdão a propósito do costume sanguinário aplicado pelo Daesh e grupúsculos afins, de sinalizarem as casas a abater, conforme era prática nas épocas ancestrais narradas no Antigo Testamento. Na Síria, a letra «Nun» do alfabeto árabe, inicial de Nazareno, serve para estigmatizar os seus seguidores. Para os cristãos daquelas paragens de alto risco, o sinal da perseguição reforçou-lhes a identidade. Até adoptaram o costume das tatooagens, igualmente antigo naquelas latitudes, sendo a mais comum a da cruz gravada no pulso, não cuidando de passar despercebidos. Um argentino conterrâneo da Irmã Guadalupe, Maxi Larghi, compôs uma música alusiva ao «nun», falando de kalashnikovs e da carnificina a que estão sujeitos, embora no refrão contraponha com o perdão e com a vida, para lá da morte imediata, porque: veo el triunfo del amor (…) llevo un anuncio em mi voz que habla de ressurreccíon, y cuando muero, no muero, porque fui marcado con la letra “nun” en mi alma por Dios.
Bondade mal aplicada? Perdão imerecido? Estranhas certezas? A multidão que transbordava na Igreja da Encarnação estava pendurada das palavras incríveis da Irmã. Testemunhava com uma autoridade indizível e invulgar (ler outra entrevista recente aqui). Muito oportunamente, foi em árabe que quis terminar, entoando um cântico lindo a Nossa Senhora (ao min. 44:14 na entrevista postada abaixo). Escolheu cantar na língua mais falada do Médio Oriente e de uma musicalidade maravilhosa, pedindo para imaginarmos estar antes a ouvir os seus irmãos sírios. Da voz cristalina daquela figura esguia e de ar frágil irradiou uma vitalidade imprevista para implorar à Mãe da Humanidade pela paz na Síria e noutros países igualmente subjugados pelos grilhões da guerra.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
Sem comentários:
Enviar um comentário