And I lov’d her that she didi pity them.
["Ela amava-me pelos perigos que eu passara; eu amava-a por que se apiedara de mim.” (na tradução do Rei Dom Luís de Bragança, Publicações Europa-América, 1999)]
Shakespeare, in Othello (Acto I, Cena III)
***
A relação amorosa é um diálogo. E um diálogo, até pela sua própria natureza, é um jogo duplo, no sentido de ser protagonizado por duas pessoas. É um movimento de vaivém, de pergunta e resposta, de afirmação e afirmação, de interrogação e interrogação. A relação amorosa que começa, que perdura ou que termina é um mistério cuja decifração está na frase que se diz e que se ouve, no olhar que se derrama ou que se pressente, ou no detalhe, esse activo que é propriedade intermitente de Deus e do diabo, coisa dual que constrói e destrói.
O amor nasce de um dualismo que concentra em si a simultaneidade. Não é A que olha para B e B que olha para A. O olhar de A para B tem de ser simultâneo com o olhar de B para A, pelo que, naquele preciso instante, os olhos se cruzam no espaço e no tempo, permitindo o amor. Na mesma linha de raciocínio, a frase que A diz a B não é simultânea com a frase que B diz a A porque um diálogo não é uma composição de monólogos. Há, no entanto, uma simultaneidade sequencial, um nexo causal, uma causa e efeito, uma força exercida sobre um corpo, corpo esse que reage – é o princípio da acção e da reacção – e, por mais microscópico que seja, desvia o seu percurso.
O amor nasce desta diversidade de dualismos: a troca de olhares, a troca de frases, a troca de sorrisos que estabelece o comércio, o toque dual de uma mão na outra. Mas o amor nasce também do motivo, do porquê? com que interrogamos o céu, o destino, as estrelas. O dualismo nasce do motivo duplo: A ama B porque...; B ama A porque... O sucesso do amor não reside no conhecimento de uma resposta, de outra resposta, de ambas as respostas. O sucesso do amor reside no dualismo perfeito das duas respostas, no encaixe perfeito de uma saliência e de uma reentrância, na conjugação harmoniosa do claro e do escuro, de Veneza e de Chipre, ou mesmo do claro e do claro, de Veneza e Veneza.
Otelo e Desdémona amam-se e casaram. Neste casal há, aparentemente, dualismo: há claro e escuro, há novo e velho, há Veneza e Chipre. E há amor, que é uma espécie de aglutinante de todos estes ingredientes adicionados à malga em proporções de par. Por vezes, quando estes dualismos assumem foros desafiantes, como se a todos os elementos se juntasse o advérbio muito (muito claro e muito escuro, muito Veneza e muito Chipre) o amor é um emulsionante, homogeneizando dois fluidos imiscíveis.
Assim sendo, o amor de um pelo outro chegaria para conferir felicidade ao par? Sim, mas...
Na terceira cena do primeiro acto, no entanto, o desfecho está traçado. Não haverá felicidade, não porque entre A e B se interponha C, ou porque um determinado lenço (tingido do sangue que não tingiu nunca os lençóis) caiu nas mãos erradas, no momento errado. Não haverá felicidade, não porque A e B se não amem mutuamente, mas porque no dualismo que contém o motivo do amor o conjunto intersecção é nulo; não houve acção / reacção; A olhou para B numa fracção de instante diferente do momento em que B olhou para A. E nessa fracção de instante o mundo rodou, a posição relativa das coisas deslocou-se, B tinha fechado os olhos um milímetro, e os olhos alheios viram coisas diferentes.
Otelo ama Desdémona; Desdémona ama Otelo. Mas este amor não é aglutinante nem mesmo emulsionante. O amor que um nutre pelo outro tem uma natureza diferente, e é isso que mata o amor.
Recorramos à tradução portuguesa: Desdémona ama Otelo pelos perigos que ele passara. Desdémona nutre por Otelo uma amor que tem uma natureza simultaneamente sexual e romântica. É o amor em toda a sua plenitude física e emocional. O amor nasce-lhe da visão que tem de Otelo, dos perigos pelos quais ele passara. Otelo encantou Desdémona com a história sobre ele próprio. Uma história que ganharia o coração de outras mulheres, tal o seu fascínio.
Recorramos de novo à tradução portuguesa: “eu amava-a por que se apiedara de mim.” Otelo não ama Desdémona por aquilo que ela é, pela história da sua vida ou pelos perigos que passara, mas ama Desdémona pela forma como Desdémona o ama a ele. Em Otelo, a haver amor, não é carnal, uma vez que não deseja que a mulher parta com ele para Chipre para satisfazer desejos carnais. Otelo ama Desdémona? Talvez à sua maneira, se entendermos como maneira legítima o mouro apenas amar a forma como Desdémona o ama a ele. E isso, por mais terrível que seja, inviabiliza o amor, ou a possibilidade do amor. Não há dualismo, não há olhar simultâneo, não há frase e outra frase numa simultaneidade consecutiva.
O casamento de Otelo e Desdémona não é consumado nunca. No leito onde nada começa, tudo acaba. O casamento, tal como a sua consumação num leito onde mora o amor, é um dualismo, o encaixe divino de dois seres, dois diálogos, dois olhares entrecruzados. Talvez, em bom rigor, não tenha havido falta de consumação por idade do mouro que redunda em menos desejo carnal, ou por falta de um amor eros. Talvez, em bom rigor, não tenha havido consumação porque não tenha havido nada de conjugal para consumar. O amor que ambos nutriam um pelo outro era de tal forma diferente, de tal forma distante no espaço e no tempo que nada mais lhes restava, a não ser uma tragédia em cima de outra tragédia. E talvez Otelo tenha cravado um punhal em si próprio, não por remorso ou medo do cárcere, mas porque não conseguia amar-se se ninguém o amava a ele. O caos invade-o, porque, tendo morto Desdémona, já não há ninguém para reflectir a imagem que ele tem, ou quer ter, de si próprio.
O dualismo permite o amor, ou a possibilidade do amor; mas permite a tragédia porque ambos podem andar a par. No entanto, a falta de dualismo, quando entre dois seres criados à imagem e semelhança de Deus, só permite a tragédia. Aconteceu assim com Otelo e Desdémona.
JdB
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