08 novembro 2017

Vai um gin do Peter’s?

NA PRIMAVERA DE 1895, NASCIA O CINEMA   

Na voragem das invenções extraordinárias do século XIX, com a industrialização e a mobilidade em larga escala, também os hobbies se sofisticaram e democratizaram. A par do boom industrial e comercial, as artes começaram a popularizar-se e uma nova indústria de divertimento despontou num ápice. Por exemplo, o século XIX viu nascer salas de espectáculo em dimensões agigantadas, que tornaram residuais as récitas dos salões palacianos muito comuns no mundo ocidental. Viu também emergir os primeiros fluxos turísticos com viagens de comboio lendárias (no Expresso do Oriente, no Trans-siberiano…) e mega-exposições artísticas e tecnológicas a atrair milhares de visitantes. Começaram as deslocações em massa, à base de curiosos e intelectuais, para se estender aos imigrantes e refugiados, devido à facilidade de acesso aos meios de transporte. Assistiu-se à fundação de Estados de peso na Europa, como a Alemanha e a Itália, assim como à erupção de uma miríade de países por toda a América Latina, no rescaldo das descolonizações. Foi ainda o século da primeira grande guerra europeia moderna, conhecida por «Guerras Napoleónicas» (1803-1815), em consequência da devastação e do clima de guerra civil (ex: período do «Terror Branco») provocados pela Revolução Francesa, que nem as peças de arte poupou. Apesar de tudo, Paris mantinha-se no epicentro da civilização ocidental, embora tivesse já a resvalar para um ocaso irreversível.  

Também o alvor do cinema data da última década de oitocentos e deriva directamente do progresso científico e técnico. Nos Estados Unidos, Thomas Edison inventava uma câmara de imagens animadas (1888) de uso individual, à americana. Cada espectador pagava para espreitar por um monóculo a animação que corria no interior de uma caixa mágica, cognominada cinescópio. 

Em França, Léon Bouly concebia o cinematógrafo, que acabou por ficar associado aos irmãos Lumière, que o patentearam mais tarde, aperfeiçoando o trabalho de Bouly e de outros investigadores gauleses. O novo aparelho projectava imagens movimentadas e visionáveis, em simultâneo, por inúmeros espectadores, dependendo apenas da lotação do espaço. Curiosamente, Edison achou louco e votado ao fracasso o projecto francês, apostado num entretenimento colectivo. Felizmente que o tempo não confirmou este vaticínio.

Outra curiosidade está no apelido dos talentosos irmãos Lumière (luz), talhado à medida do seu feito mais luminoso. 



A 22 de Março de 1895, Auguste e Louis exibiram perante uma pequena plateia a primeira obra do cinema, revelando um notável sentido de marketing. A curtíssima-metragem de 50 segundos tinha por tema a fábrica de família. Intitulou-se «La Sortie de l'usine Lumière à Lyon» e mereceu várias versões, para retocarem o efeito pretendido – hordas de homens e mulheres de semblante agradável e em passo despachado certificavam o vigor da força de trabalho da oficina dos realizadores. Precisamente, algumas das variantes sobre este tema consta da colectânea de 114 filmes dos Lumière, reunidos num documentário(1)  montado, em 2016, pelo director do Festival de Cannes e do Instituto Lumière – Thierry Frémaux. 



Nesse ano de 1895, os dois irmãos não se contentaram com a estreia absoluta em Março, empenhando-se em aperfeiçoar o mini-filme «A Saída da Fábrica Lumière em Lyon». Narra a história que terá calhado, numa noite de insónia, Louis L. chegar à solução optimizada das 24 imagens por segundo, capazes de reproduzir o movimento natural. Assim, a 28 de Dezembro de 1895, a dupla Lumière organizou um segundo visionamento no salão des Indiens, localizado no nº 14 do Boulevard des Capucines (hoje, Hotel Scribe). Entre os 33 espectadores, encontrava-se um futuro realizador de cinema, Georges Meliès, que ficou extasiado com o fabuloso invento. 

O conjunto das curta-metragens seleccionadas por Frémaux (com o trailer no final) correspondem a 90 minutos mágicos, que nos transportam até um mundo distante, situado entre 1895 e 1905. Esse período de transição entre dois séculos traz-nos: o ambiente sofisticado das míticas Exposições Mundiais de Paris; as amplas avenidas de Manhattan cruzadas por caleches e longas carruagens; a antiquíssima e soberba esfinge de Gizé, indiferente à passagem do tempo; as ruelas enigmáticas de Jerusalém com ecos da era medieval; a acumulação divertida de gentlemen em chapéu de coco junto ao Parlamento britânico; os fumadores de ópio orientais numa atmosfera esfumada que envolve o espectador no seu êxtase meio tóxico; as filas de pequeninas em vestidos tufados brancos e muitos laçarotes, acompanhadas por nurses fardadas à Florence Nightingale; pescadores de rosto sulcado pela dor a tentar domar as ondas numa barcaça frágil, antecipando o dramatismo que ficou depois consagrado no ecrã pelo genial realizador russo Sergei Eisenstein. 

O humor, a tensão tragicómica da vida, o suspense, o olhar subjectivo da câmara, as técnicas de travelling, as escolhas meticulosas da mise-en-scène e da melhor perspectiva, os remakes, a profundidade de campo, e até o recurso a pequenos efeitos especiais, impregnam as obras surpreendentes dos pais do Cinema. 

O rol de filmes «LUMIÈRE» flui por temas, com comentários de Frémaux em off, certeiros e cheios de humor. 

Há lugar ao primeiro momento de terror da Sétima Arte, com a chegada do comboio à gare de La Ciotat, provocando o pânico no público, que fugiu da sala para evitar ser colhido pela locomotiva. 

O comboio que parecia prestes a atravessar o ecrã e invadir a sala.

Há lugar às blagues com pequenos episódios ensaiados, como a blague evocada na imagem de cartaz. Mas há também as cenas comuns, que hoje resultam anedóticas, como a bailarina desengraçada e acelerada a querer exibir todas as habilidades em parcos 50 segundos, os soldados franceses a falharem os exercícios militares, as crianças a estragar as coreografias de grupo com as suas espontaneidades deliciosas, etc. 

Este foi uma das provas falhadas por um regimento militar, a merecer um comentário mordaz sobre o motivo por que a França passou a somar derrotas

Há lugar ao espectáculo com a introdução de imagens coloridas artesanalmente, num delírio de tons diferentes aplicados sequencialmente sobre o longo vestido da bailarina, que faz rodar a saia plissada num efeito de borboleta imparável. São 50 segundos de tirar o fôlego.

À falta de actores profissionais, recorre-se também à prata da casa, com a família dos irmãos em primeiro plano, sobretudo os mais novos, sempre naturais e fotogénicos:
  
A protagonista é a filha de um dos realizadores, que come tranquilamente a bolacha, sob o olhar embevecido dos pais. 

A emoção e a carga afectiva também contracenam, desde a primeira hora do Cinema. A personagem considerada mais enternecedora por Frémaux, na multidão imensa filmada pelos dois realizadores, é a da pequena vietnamita a correr à frente de uma câmara estrategicamente localizada para lhe captar um sorriso meigo, enquanto avança livremente, com uma simplicidade encantadora:    



Chegaram a perto de 1500 as curta-metragens realizadas pelos manos da luz, embora poucas tenham subsistido, pois o material era muito inflamável. A maioria acabou consumida pelas chamas. Daí o mérito deste documentário, composto por exemplares restaurados, a confirmar quanto o Cinema nasceu com poesia. Há 122 anos, surgiu bem mais do que um passatempo revolucionário. Inaugurou-se uma nova expressão de Arte – a Sétima!
      
Maria Zarco
 (a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta) 
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(1) FICHA TÉCNICA:

Título original: «LUMIÈRE ! L’AVENTURE COMMENCE»
Título traduzido em Portugal: «LUMIÈRE! A AVENTURA COMEÇA»
Realização: Thierry Frémaux
Argumento: Thierry Frémaux
Produtor: Bertrand Tavernier e CNC-Centre Nationale de la Cinématographie
Fotografia: Irmãos Lumière
Banda Sonora: o compositor francês Camille Saint-Saëns (1835-1921)
Duração: 90 min.
Ano:        2016
País: França
Elenco:  - os irmãos Lumière: Auguste e Louis
                - Thierry Frémaux, 
                - Martin Scorsese, etc.
Local das filmagens: Os sítios originais, há um século atrás:  França, Nova Iorque, Londres, Cairo, Vietname, Jerusalém, etc.
Prémios /distinções: Nos festivais de Cannes e de Toronto 
Site oficial: https://www.facebook.com/Lumi%C3%A8re-Laventure-commence-218273918611458/

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