Num projecto híper ambicioso, dois craques da animação – a polaca Dorotea Kobiela e o britânico Hugh Welchman – reuniram os apoios certos para desvendar uma parte misteriosa (mais uma!) da biografia atormentada de Vincent Van Gogh (VVG), fazendo fluir com vida as telas do pai da pintura moderna. Uma loucura visual, que espanta e encanta(1) .
Contou com o trabalho árduo de 120 pintores, seleccionados entre mais de 4000 candidatos. Durante seis anos, empenharam-se num contra-relógio para acordar os 94 originais de Vincent e reformatar mais 31 obras do grande mestre. Conferiram-lhes movimento ao replicá-los em óleos pintados à maneira de VVG, como clonos estereoscópicos. O elenco das principais telas incorporadas no filme consta no site oficial em: http://lovingvincent.com/by-vincent-painting,27,pl.html
Na abertura da animação, a famosa «NOITE ESTRELADA» surge fulgurante, cada pormenor do quadro a ondular num baile suave mas expressivo. Parecem gozar a mobilidade recém-conquistada, depois de a magia do cinema os resgatar do estaticismo.
Para se ter uma escala dos recursos alocados: esvaíram-se nos oito segundos inaugurais do filme um ano e meio de labor intenso de três pintores profissionais e 3.000 litros de tinta. A complexa produção desenrolou-se por três etapas consecutivas: filmagem dos actores sob fundo esverdeado com a técnica de chroma key; edição dos fotogramas e subsequente adaptação às telas oitocentistas; e a fase avassaladora de pintura de cada “frame” (c. 65 mil) segundo a técnica de VVG, por um escol de mais de uma centena de artistas.
A contracenar com as obras de Vincent, os flash-backs da história são sustentados por óleos a preto-e-branco, fiéis ao estilo do holandês. Este grupo inspira-se em fotografias da época.
O título do original inglês dá o mote à narrativa, tomando a fórmula da despedida afectuosa usada pelo pintor nas cartas enviadas ao seu irmão e mentor – Theo Van Gogh: Your LOVING, VINCENT. A correspondência entre ambos ultrapassou as 900 cartas, justificando a amizade do carteiro Armand Roulin pelo artista, afinal, o seu melhor cliente! O argumento baseia-se na missão legada por Roulin ao filho, para garantir a entrega da última carta de Vincent a Theo. Honraria, assim, o último desejo do artista. A tarefa, bem mais intrincada do que se supunha, levou o aprendiz de carteiro até à aldeia francesa Auvers-sur-Oise, onde o pintor tinha sucumbido no dia 29 de Julho de 1890.
«Retrato do Carteiro Joseph Roulin», início de Agosto de 1888 |
«La Berceuse» (Augustine Roulin), 1889 |
De porta em porta, saltando de testemunha em testemunha, a história converte-se num thriller sobre as circunstâncias da morte precipitada do pintor, de interpretação menos clara do que se terá convencionado, à época. Na altura, taxou-se de suicídio. A imprevisibilidade e os excessos no comportamento do artista, que padecia de alucinações e crises psicóticas, acomodavam tal desfecho. Simplesmente, os factos clarificados posteriormente – desmancha-prazeres das conveniências sociais e de certas agendas – apontam noutro sentido, conforme sugere o filme, baseado num veredicto clínico da altura, mas ocultado, além de outras evidências.
Embora a tese que vingou fosse subscrita pelo médico homeopata (ex-)amigo do pintor – Paul Gachet, há testemunhos comprovativos da sua feroz desavença (uma constante na vida de VVG) e da estranha reacção do clínico após o disparo, pois não removeu a bala, antes deixando o doente exaurir-se numa morte lenta e dolorosa. Seria incapacidade técnica? Refere-se ainda que Gachet teria ciúmes do talento de Vincent, além de estar furioso com a aproximação do pintor à sua filha, igualmente embevecida. Outro defensor desta tese é o filho Gachet, cuja família se apropriou sumariamente de várias telas do pintor, no rescaldo da sua morte.
Em contracorrente, outro médico menos envolvido emotivamente detectou marcas óbvias de homicídio, desde logo por a zona atingida ser de difícil acesso ao próprio. Mesmo na hipótese acrobática de Vincent ter alvejado o seu abdómen, o impacto da proximidade teria feito estragos inexistentes na sua ferida. Além disso, a trajectória da bala indicava ter sido disparada a bons metros de distância, em direcção oblíqua debaixo para cima (uma impossibilidade para o próprio), a partir de uma posição quase rasteira, provavelmente abaixo do perímetro da tela que estaria a ser pintada e constituía um entrave natural ao atirador anónimo. Também era um contra-senso ter a intenção de se matar e desistir de disparar um segundo tiro, preferindo antes sobreviver com uma ferida mortífera a prazo, que redundou numa agonia de 29 horas! Outro facto por esclarecer está no inexplicável desaparecimento de todo o material de pintura existente no local do disparo e demasiado pesado para poder ter sido mexido pelo ferido. Mais: apesar dos kms de papel escritos por VVG, não referiu em carta alguma a possibilidade de suicídio. Ao invés, na que escrevera na véspera do tiro, entusiasmava-se com grandes projectos para o futuro.
Ao longo dos anos, a principal testemunha em favor do suicídio foi a filha do estalajadeiro onde Vincent pernoitava, Adeline Ravoux, com apenas 13 anos na altura e relatos posteriores desencontrados uns dos outros. Ou seja: fixámo-nos numa teoria pouco sustentável, pejada de inconsistências.
Até na morte, Van Gogh terá sofrido a sorte dos desprotegidos, preferindo-se uma “narrativa” hábil e plausível, que resguardou a identidade dos assassinos, além de ajudar a alimentar agendas romantizadas em torno do herói-marginal, como se a bizarria e a marginalidade fizessem prova de genialidade. No filme e segundo averiguações mais recentes, atribui-se o crime aos chefes de um gangue de liceais arruaceiros e violentos – os manos Gaston e René Secrétan. À hora da morte, nos anos 50 do século XX, René deixou uma mensagem alusiva àquele episódio tremendo da sua vida, sendo certo que, à data do tiro, costumava exibir-se com uma pistola carregada.
Os outros motivos em desfavor do propalado suicídio são de natureza mais nobre, ligados ao carácter do artista. Também, por isso, menos objectivos, não podendo sustentar sozinhos a nova tese a que LOVING VINCENT dá voz, apesar de ser consensual que o pintor padecia de uma depressão grave com picos de desordem psiquiátrica, agravados pelo excesso de trabalho e por hábitos desregrados.
A existência trágica de Vincent poderia ser considerada o expoente do fracasso. Primeiro, incompreendido pelos pais, ao somar reveses e rejeições que não o recomendavam para gerir os negócios de família. E logo calhava ser o primogénito. A fim de tentar a sorte noutras paragens, deambulou por vários países, experimentou diferentes ofícios, inclusive como missionário na Bélgica, mas em lado nenhum se sentiu minimamente acolhido. Aos 27 anos, era um homem perdido e escorraçado pela maioria, com a honrosa excepção de um par de amigos artistas e do irmão mais novo – Theo – vendedor de arte, que o instigou a lançar-se na pintura.
A vocação tardia e a falta de habilitações académicas não impediram Vincent de bater recordes como autodidacta inspirado. No espaço de quase uma década pintou, sofregamente, mais de 2000 obras, entre 900 óleos (o filme refere apenas 800) com alguns pintados no verso por falta de dinheiro para novas telas, e 1100 desenhos e sketches. Porém, só uma ínfima minoria lhe reconheceu a genialidade, chegando o sucesso postumamente. Dir-se-ia, demasiado tarde…
Por qualquer mistério (outro), o pós-impressionista/expressionista guardou até ao fim uma luminosidade interior e uma grandeza no olhar, que impregnou as telas de cores garridas e quentes, revelando um mundo atractivo e lindo. Até as obras lavradas no hospício são generosas a comemorar a vida. Em Van Gogh, os céus merecem pinceladas de azuis festivos salpicados por estrelas cintilantes, as nuvens entretêm-se em coreografias ondulantes, o trigo forma mantos dourados e toda a paisagem é deslumbrante, como se a Beleza fosse a face mais visível do universo. Estas telas datam do ano em que morreu:
De algum modo, coube a um dos artistas mais sofridos – com maior ou menor grau de responsabilidade, pouco importa – devolver-nos a criação num estádio incrivelmente límpido, ainda por estrear, centésimos de segundo depois do Big Bang. VVG parece ter sempre vislumbrado aquele esplendor que, um século mais tarde a milhares de kms de distância da terra, maravilhou os astronautas que olharam para o «planeta azul». Observavam-no a partir da lua, talvez como Vincent, que terá sido o mais lunar dos homens, pelas melhores razões. Lunar, mas não lunático! Antes de enorme agudeza de espírito. Num postal enviada a Theo, Vincent explicava: «Eu posso ver um campo cercado de trigo (...) acima do qual, durante a manhã, eu vejo o Sol nascer com toda a sua glória.» Sem se deter na dor – que era imensa – VVG valorizava o Belo em tudo o que via. Uma ironia eloquente ser ele a manter esta aptidão raríssima.
Como canta a conhecida ária dedicada por Don McLean ao híper sensível, frágil e afectuoso Vincent, repugna o bullying de que foi alvo e o isolamento a que foi condenado. Os mais penalizados acabaram por ser os que se recusaram a aceitá-lo na sua individualidade e gigantesca diferença, por óptimos motivos. Segue a versão incluída na banda sonora do filme, magistralmente interpretada por Lianne Las Havas sob a imagem do «Autorretrato» pintado no ano da morte. A letra sugere, dramatizando até ao limite: «they could not love you (…) this world was never made for someone as beautiful as you».
No filme, possivelmente citando uma das cartas de Vincent, este conta ao irmão o que pretende exprimir com o pincel: «show the world what this nothing has in his heart» e ainda «the truth is, we cannot speak other than by our paintings.» À medida que o tempo passa, a vida aclamada pelo precursor do modernismo permite desvelar novos indícios, que obrigam a actualizar a biografia enigmática do pai do modernismo. Sobre o corte da orelha, historiadores alemães alegam ter sido cortada por Gauguin, esgrimista exímio, assumindo Van Gogh a brutal amputação para resguardar o amigo da prisão, enquanto ele consentia em ser hospitalizado num hospício psiquiátrico.
LOVING VINCENT ajuda a fazer luz sobre o seu passado, com o mérito acrescido do estilo sóbrio e tranquilo da animação estar isenta daquele sentimentalismo febril que costuma vir associado à figura algo inacessível do mestre. Percebe-se o manancial imenso que continua por desbravar.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta)
_____________(1) FICHA TÉCNICA:
Título original: «LOVING VINCENT»
Título traduzido em Portugal: «A PAIXÃO DE VAN GOGH»
Realização: Dorotea Kobiela e Hugh Welchman
Argumento: Dorotea Kobiela e Hugh Welchman
Produtor: Sean M. Bobbitt e Hugh Welchamn
Banda Sonora: Clint Mansell
Duração: 94 min.
Ano: 2017
País: Polónia e Reino Unido
Elenco:
- o actor polaco Robert Gulaczyk (VVG)
- Chris O'Dowd (o filho do carteiro amigo)
- Douglas Booth (o carteiro)
- Saoirse Ronan (a jovem Gachet, por quem VVG se apaixona)
- Aidan Turner,
- Jerome Flynn, etc.
Local das filmagens: Londres e estúdios/ateliers de pintura – 2 na Polónia e 1 na Grécia.
Site oficial: https://www.facebook.com/lovingvincentmovie e http://lovingvincent.com/
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