Nesta minha recém-chegada à Netflix comecei a ver uma série que me tem sido elogiada por muita gente próxima: The Crown, que retrata a vida da família real inglesa desde pouco tempo antes da morte de Jorge VI até não sei onde, porque estas séries são dinâmicas.
Há, quanto a mim, três motivos para se seguir a série: (i) como entretenimento puro, (ii) como documento (algo) histórico, (iii) como metáfora para a vida. O primeiro motivo é auto-explicativo - as vidas modernas são tristes, pouco temos para dizer uns aos outros, e realeza é realeza. Sempre é mais glamoroso (como se diz agora) ver o quotidiano da casa de Windsor do que do Jamaica. Pode ver-se a série como um documento histórico: como se vivia no palácio, como eram as rotinas e as relações da Rainha com os primeiros-ministros, as tensões políticas dentro do governo, os jogos de bastidores, a resolução de crises internas ou externas. Há um terceiro motivo, seguramente menos óbvio, que passa por olhar para a série como uma metáfora para a vida.
Viver é perigosíssimo, diz repetidamente João Guimarães Rosa no seu livro Grande Sertão: Veredas. E a vida não é, de facto, coisa fácil, nesta luta constante entre passado e futuro, entre saber agir e saber não agir, entre silêncio e voz. Num certo sentido, a ideia de ser-se Rainha de Inglaterra (porque é disso que falo agora, e porque a monarquia inglesa se reveste de especificidades) é uma espécie de lugar geométrico de todas as tensões da vida, de todas as escolhas da vida.
Na nossa existência há sempre caos e ordem como representando o território inexplorado e o território explorado. A tradição é ordem, a mudança é caos (Jordan Peterson, no seu 12 Regras para a vida, um antídoto para o caos espraia-se mais sobre este assunto, mas fiquemos por aqui) e em todos os reinados, como em todos os momentos da nossa vida, há esta tensão entre um e outro - e por vezes uma tensão muito forte. Na série há três exemplos muito flagrantes: (i) o desejo da Princesa Margarida em casar com um plebeu divorciado; (ii) a vontade da Rainha Isabel escolher um secretário pessoal mais júnior; (iii) a ideia, defendida pelo Príncipe Filipe, de que a cerimónia da coroação deve ser transmitida pela televisão. Todas as situações são caos, são território inexplorado, são rompimentos com tradições. Num caso vinga o caos, nos outros dois vinga a ordem. Mas em todos a decisão não foi fácil, provocou desgosto, constrangimento, dúvida, perplexidade.
Dois momentos (entre muitos outros) que retenho da série: num, o secretário pessoal da rainha, na iminência da reforma, sugere para seu sucessor alguém mais sénior (para manter uma tradição) enquanto a rainha prefere alguém específico, mas mais novo. O secretário ainda em vigor fala (embora não o mencione) de território inexplorado: Eduardo VIII rompeu com a tradição ao não querer morar em Buckingham; a rainha quer romper com a tradição de um plano de sucessão antigo e eficaz. É por aqui, por esta cedência ao caos, que a podridão (e a expressão é dele) entra e que a instituição acaba por morrer.
O segundo momento: o Duque de Windsor, que chegou a ser Eduardo VIII, assiste, com amigos, à transmissão pela televisão da coroação da sua sobrinha como Isabel II. A cerimónia desenrola-se acompanhada pela explicação que o Duque vai dando sobre o que se passa e o que está por trás de cada gesto. Nota-se, nele, conhecimento histórico, informação detalhada - talvez alguma nostalgia por não ser ele o protagonista daquela cerimónia. Depois, a um dado momento, um pálio cobre o trono onde a rainha será ungida com o óleo santo. A rainha desaparece do campo de visão das câmaras. Alguém pergunta o motivo pelo qual não pode ver-se o que se passa, por que motivo a unção com o óleo não é visualmente acessível a todos. O Duque de Windsor responde: porque somos apenas humanos.
JdB
Na nossa existência há sempre caos e ordem como representando o território inexplorado e o território explorado. A tradição é ordem, a mudança é caos (Jordan Peterson, no seu 12 Regras para a vida, um antídoto para o caos espraia-se mais sobre este assunto, mas fiquemos por aqui) e em todos os reinados, como em todos os momentos da nossa vida, há esta tensão entre um e outro - e por vezes uma tensão muito forte. Na série há três exemplos muito flagrantes: (i) o desejo da Princesa Margarida em casar com um plebeu divorciado; (ii) a vontade da Rainha Isabel escolher um secretário pessoal mais júnior; (iii) a ideia, defendida pelo Príncipe Filipe, de que a cerimónia da coroação deve ser transmitida pela televisão. Todas as situações são caos, são território inexplorado, são rompimentos com tradições. Num caso vinga o caos, nos outros dois vinga a ordem. Mas em todos a decisão não foi fácil, provocou desgosto, constrangimento, dúvida, perplexidade.
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Dois momentos (entre muitos outros) que retenho da série: num, o secretário pessoal da rainha, na iminência da reforma, sugere para seu sucessor alguém mais sénior (para manter uma tradição) enquanto a rainha prefere alguém específico, mas mais novo. O secretário ainda em vigor fala (embora não o mencione) de território inexplorado: Eduardo VIII rompeu com a tradição ao não querer morar em Buckingham; a rainha quer romper com a tradição de um plano de sucessão antigo e eficaz. É por aqui, por esta cedência ao caos, que a podridão (e a expressão é dele) entra e que a instituição acaba por morrer.
O segundo momento: o Duque de Windsor, que chegou a ser Eduardo VIII, assiste, com amigos, à transmissão pela televisão da coroação da sua sobrinha como Isabel II. A cerimónia desenrola-se acompanhada pela explicação que o Duque vai dando sobre o que se passa e o que está por trás de cada gesto. Nota-se, nele, conhecimento histórico, informação detalhada - talvez alguma nostalgia por não ser ele o protagonista daquela cerimónia. Depois, a um dado momento, um pálio cobre o trono onde a rainha será ungida com o óleo santo. A rainha desaparece do campo de visão das câmaras. Alguém pergunta o motivo pelo qual não pode ver-se o que se passa, por que motivo a unção com o óleo não é visualmente acessível a todos. O Duque de Windsor responde: porque somos apenas humanos.
JdB
1 comentário:
Associações à Bragança e que são sempre bem vindas.
Do caos nasce a luz. Nasce, desde que olhemos para o caos como uma possibilidade e não como um impedimento ou martírio. Eu pessoalmente gosto do caos, sinto-me desafiada e em permanente evolução. A ordem tem o seu tempo de antena e é, para mim, trincheira onde descanso e recupero forças para criar, provocar, procurar, whatever, uma nova desordem de vida.
Obrigada pela reflexão. Nunca tinha pensado nisto!
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