Num certo sentido, nada fez tão mal a um determinado fado do que a expressão novas sonoridades; num certo sentido nada fez tão mal a uma determinada gastronomia do que a expressão novos sabores. Ambas se incluem numa campanha mais vasta - e por isso potencialmente mais perigosa - que assenta na ideia de novas experiências.
Muitos de nós cresceram a ouvir fado interpretado de uma certa forma: um conjunto de guitarras e uma voz, pese embora algumas variantes. Muitos de nós cresceram a comer pastel de nata de uma certa forma: massa folhada e um creme, seguramente sem grandes variantes.
Amália rompeu a tradição quando começou a cantar poetas eruditos e se fez acompanhar ao piano e ao saxofone. Nenhuma das duas variantes vingou marcadamente - pessoalmente regozijo-me com o fim do saxofone - e talvez o piano nem tivesse surgido não fosse a criatividade de Alain Oulman. Hoje, o fado, graças às novas sonoridades, é acompanhado com contrabaixo, aqui e ali com bateria e, sabe Deus, se com guitarra eléctrica. Hoje o pastel de nata leva queijo da serra, e talvez uma ou outra inovação.
A minha relação com a inovação é egoísta: gosto de alguma inovação tecnológica, ligo menos à inovação gastronómica. Quanto à inovação musical, tem dias. Mas um pastel de nata é um pastel de nata e um fado é um fado. Se alterarmos muito as receitas por trás de ambos os produtos, um dia não saberemos o que é o quê. E se pedirmos um fado teremos de explicar que gostávamos que tivesse guitarra e se pedirmos um bacalhau à braz teremos de explicar que é com ovos mexidos, e não com infusão de santola.
Até onde pode ir a inovação? Não sei, é uma discussão sem fim. Talvez seja a usura do tempo que acaba por apurar a definição - talvez não fosse fado e, por isso, o saxofone não vingou, e talvez não seja iscas com elas e, por isso, a salada de rúcula não vingue. Mas não podemos deixar que a expressão novas experiências (que no caso dos fadistas é, muitas vezes, um expediente para cativar plateias) desvirtue tudo, sob risco de, daqui a 2 gerações, ninguém saber o que é um fado, porque actualmente tem sintetizadores, ou umas sardinhas assadas, porque agora são enroladas em escargots.
A mudança de uma poesia popular no fado para uma poesia erudita não mudou a sonoridade da música. Mudou a história que se contava - ou deixou de contar-se. Porém, tirar a guitarra ao fado é dar-lhe uma roupagem de tal forma diferente que falamos de outra coisa. Até pode ser a melodia do fado Lopes, mas se for uma orquestra já não sei se é fado. Pastel de nata não tem queijo da serra - chamem-lhe outra coisa.
O mundo pode tornar-se perigoso - não é só o exército islâmico ou a voragem dos impostos e dos virus mais resistentes. O perigo pode vir de uma confusão tal que já ninguém sabe o que é o quê, ou vale tudo o mesmo. Como dizia um amigo, comentando um texto que postei esta semana, não há fado afro, nem afro fado; nós queremos ter à força uma identidade. Para estes palermas, não é a língua que é a minha patria, mas sim o Martim Moniz, e o parlamento o mercado que lá há. A portugalidade tornou-se numa caldeirada.
JdB
2 comentários:
Subscrevo! E não é só na portugalidade; tudo o que afirma pode, hoje em dia, extrapolar-se para a sociedade em geral e esse é o problema... começa a faltar identidade e as referências, a todos os níveis, andam por aí, algures. Quanto ao pastel de nata, aconselho sempre os de Belém... Para já, ainda não mudaram!
Concordo consigo e com o seu ilustre comentador.
A falta de limites, de orientação, das coisas que têm nomes e que trazem livro de instruções pode ser dramática. Digo dramática porque vai despertar dramas como o isolamento, a desconexão, a anomia entre tantas outras que empurrarão a humanidade para um limbo, onde todos sabem que lá estão, mas ninguém sabe como nem para quê.
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