Há, entre os membros de uma determinada comunidade (que pode ser um país) um vocabulário comum, constante dos dicionários mais triviais: é aquilo que nos permite, ao nível de uma sociabilidade genérica, pedir, perguntar, responder, comentar. Traduz o que aprendemos em casa, na escola primária, no liceu, na convivência com família ou amigos; é uma linguagem não técnica, um não-jargão, pese embora a possibilidade de jargões familiares.
A escolha de uma determinada actividade (advogado, canalizador, mecânico, enfermeiro, engenheiro, doceiro) permite o acesso a um vocabulário diferente, mais alargado, porém mais específico: é o que nos possibilita manter uma conversa mais técnica entre pares, ou graças a um fenómeno a que se chama curiosidade, entre singulares diferentes: um engenheiro electrotécnico a falar de relés com um engenheiro electrotécnico, mas também um advogado a discutir travões de disco com um mecânico.
Entre o detentor do mister e o vocabulário estabelece-se uma relação biunívoca. Por um lado, ao atingir-se um determinado patamar de experiência, alcança-se um nível suplementar de vocábulos; isto é, a prática da doçaria provê o acesso a um conjunto diferente de expressões: ponto de espadana, açúcar mascavado, massa lêveda. Ou seja, quanto mais experiente se é, mais termos se dominam. Por outro lado, a posse crescente da linguagem técnica expande uma certa consciência do indivíduo: o domínio do ponto pérola permite manter uma discussão sobre a manufactura de compotas. O mundo alarga-se por via da possibilidade de diálogo.
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O estabelecimento de uma relação entre o que fazemos e o vocabulário que utilizamos é, dir-se-ia, auto-explicativo. Parece-nos normal que um advogado utilize expressões como enfiteuse ou usucapião, mas talvez nos surpreenda ver o mesmo advogado a utilizar expressões como anisocoria ou esplenotomia, mais do domínio da prática médica. Contudo, podemos ir mais longe e procurar uma relação entre o que somos e o vocabulário que utilizamos. Somos preguiçosos, coléricos, generosos, românticos, egoístas, socialmente distantes ou com aversão ao contacto físico; gostamos de meditação, de agitação, de silêncio; somos perfeccionistas ou não queremos estar parados.
Tudo isto, não sendo, em bom rigor, um mister, tem-lhe associado um vocabulário que, como vimos acima, é causa e consequência da influência no agente. O romântico usa expressões como amor ou quero dar-te a minha liberdade; as pessoas que se realizam a fazer coisas usam expressões como sextavado, com menos frequência grosa ou, amiúde, ainda não parei um minuto desde que acordei. Tal como o engenheiro gosta de usar expressões como indutância ou electroíman, o avesso ao contacto físico usa, sem incómodos de maior, expressões como distância ou hoje ainda não, que amanhã também tenho de levantar-me cedo.
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O que fazemos ou o que somos configura o vocabulário que usamos, sendo que a inversa também é verdadeira: as expressões traduzem sentimentos tanto como induzem sentimentos. Assim como não podemos evitar expressões como motor ou sistema de biela-manivela se habitarmos o mundo da engenharia de máquinas, dificilmente poderemos usar a expressão amo-te se não sentirmos desejo de tocar o outro; inversamente, se tivermos um certo horror ao contacto físico dificilmente nos ocorrerá dizer amo-te, derivado a um total desfasamento entre emoção e discurso. Ao contrário do discurso técnico, o discurso afectivo é uma retórica, uma técnica antiga (para Cícero, com vista a persuadir, provar e entreter) que utiliza palavra e gesto. Perceber a coerência entre um vocabulário e um feitio não é uma perca de tempo; é descortinar uma (in)coerência que nos explica muito do outro.
Dá-me o teu dicionário e eu dir-te-ei quem és.
JdB
1 comentário:
Gosto imenso de ler estas suas associações por vezes espúrias (linguagem de estatístico) e a sua capacidade única de criar música entre a palavra anisocaria , grosa e amo-te.
Um desafio:
em vez de e apenas
"dá-me o teu dicionário e dir-te-ei quem és"
reflectir sobre,
"Muda o teu dicionário e caminha para quem queres ser "
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