25 agosto 2020

Divagações

 


Duas reflexões do livro acima:

"Quando François Renard, ignorando o conselho do filho para tomar um clister, pegou numa caçadeira, usou uma bengala para acionar os dois canos e produzir um 'ponto escuro acima da cintura, como um pequeno fogo apagado', Jules escreveu: 'Não me censuro por não o ter amado mais. Censuro-me por não o ter compreendido'" (p. 157)

"Talvez Stravinsky, na velhice extrema, tivesse esses finais em mente quando chamava do quarto a mulher ou algum membro da família. 'De que precisas?', perguntavam-lhe. 'De ter a certeza da minha própria existência', respondia. E a confirmação podia vir sob a forma de um afago de mão, de um beijo ou de lhe porem a tocar um dos seus discos preferidos." (p. 163)

***

As citações estão separadas,  no livro, por meia dúzia de páginas; poderiam estar separadas por uma, ou por cem. E, no entanto, ligam-se fortemente, não porque falem da morte, mas porque falam de amor e de entendimento. Segundo o próprio, não foi a falta de amor de Jules Renard pelo pai que levou este ao suicídio, mas a falta de compreensão, como acontece tantas vezes. Por outro lado, talvez Stravisnky não desejasse uma simples prova de vida. Talvez quisesse, mais do que os outros o amassem, que os outros o vissem, para assim ele próprio poder ver-se. Uma compreensão no sentido do entendimento. Querermos ter a certeza da nossa própria existência é querermos ter a certeza de que não somos transparentes, de que não somos, como dizia um padre que conheci bem, "um móvel velho, no qual toda a gente dá encontrões mas ao qual ninguém liga". 

É o amor que nos salva, diz uma sabedoria antiga. Mas o amor, se não lhe tiver associado a compreensão, o entendimento do que é o outro, de nada serve, é apenas afecto. Ainda que mal comparado vi isso ontem,  no consultório onde o meu cão foi vacinado. 

JdB

1 comentário:

ACC disse...

Belissima escolha e a sua reflexão fez-se perceber e sentir a verdadeira dimensão e a importância de sabermos que alguém nos compreende.
Mais do que o amor, atracção, química, paixão ou o que seja que junta duas pessoas, o que as mantém unidas é a compreensão mútua (arrisco a cumplicidade). Eu entendo-te, eu compreendo-te, partilhamos o mesmo mundo. Não é apenas afecto, não é apenas estima, é, apesar das nuances, da estética e acuidade visual, ver a borboleta com os mesmos olhos.

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