10 agosto 2020

Dos livros

Durante a maior parte da minha vida fui um leitor assíduo. Não deverei ter lido só livros bons e seguramente que falhei leituras importantes. A minha mãe lia o que era mais ou menos tradição numa pessoa moderadamente curiosa, nascida em 1925, a quem cortaram os estudos cedo: romances franceses, livros policiais, o Eça. O meu pai também era versado no Eça, de quem leu tudo, mas, fora isso, teria sobretudo leituras mais específicas: livros sobre Lisboa, sobre antiguidades, sobre pratas, sobre genealogia, etc. O meu gosto pela leitura veio, por isso, dos dois: romances, livros policiais, alguma literatura portuguesa. Nada que acrescente valor estar a referir em detalhe.

As minhas leituras mudaram de forma assinalável quando decidi fazer uma pós-graduação e um mestrado. A mudança acentuou-se ainda mais quando decidi fazer um doutoramento (cuja escrita da tese vai numa fase muito incipiente). Num instante estava a ler livros sobre o silêncio ou sobre o ruído, sobre teoria matemática da comunicação ou sobre despojamento em arquitectura; no instante seguinte lia um conjunto de ensaios de Frank Lloyd Wright (que já mencionei no estabelecimento) ou uma obra sobre solidão ou sobre as virtudes de uma existência lenta, etc., etc. Deixei a ficção de lado, com algumas excepções de recomendações para um seminário ou outro. Não me custou; gostei de ler coisas diferentes, algumas das quais me foram penosas, por exigirem um destreza mental que já não tenho.

***

Nos bancos da faculdade aprendi que a pergunta "de que trata o livro?" não tem uma resposta imediata. Dou um exemplo (e admito alguma falha no raciocínio): se há uns anos me perguntassem de que trata o livro O Fio da Navalha (Somerset Maugham) eu talvez dissesse que era a história de um americano que, na sequência da Grande Depressão e de uma falência, corre o mundo fazendo muitas coisas... Hoje alguém poderia interromper-me e dizer: isso que me está a contar é a história do livro; eu quero que me diga de que trata o livro. E eu afirmaria, de forma convicta (o que não quer dizer certa), que era sobre a procura e a descoberta interiores.

Por sugestão de mão muito amiga li, nestas últimas duas semanas, o livro acima. Foi já no fim, nas últimas páginas, que dei comigo a pensar no exemplo que dei relativamente a O Fio da Navalha. Se me perguntarem de que trata o livro diria: é sobre um nobre russo que, após a revolução de Outubro, é condenado a viver num hotel. Talvez eu próprio me interrompesse e dissesse: isso é a história do livro. Mas de que trata o livro? Não sei responder, confesso. Só sei contar a história, o que, reconheço, é (ou pode ser) pouco.

Nem todos os livros têm de ter uma mensagem subliminar. Alguns livros têm o condão de nos entreter, nos divertir, nos proporcionar horas de lazer prazenteiras - e isso pode ser muito bom. Porém, quando uma referência ao livro menciona que uma vida sem luxos pode ser o maior luxo de todos, vou à procura de algo mais. Algo que não descortinei, confesso. Deveria ter descortinado, ou bastava-me seguir a trama, perceber o enquadramento histórico, aprender uma ou outra coisa, apreciar a qualidade da escrita?

Nenhum minuto da minha vida se perdeu com a leitura do livro em causa. Gostei do livro e agradeço a sugestão, que me acrescentou valor sobre vários pontos de vista. Contudo, depois de ler livros muito específicos sobre ruído, silêncio, comunicação, budismo, ordem cartuxa, arquitectura, etc., questiono-me se perdi a capacidade de dizer do que trata um livro, limitando-me a contar a história desse livro. Será que procuro algo que não está lá ou, de facto, estou a perder algum sentido crítico?

JdB

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