21 outubro 2020

Vai um gin do Peter’s ?

ARMADILHA A PARTIR DOS APAGÕES DA MEMÓRIA 

Há meses, alguma ala do “politicamente correcto” incentivou (nos bastidores) o derrube de estátuas e os julgamentos ad hoc às figuras do passado, embarcando na estultice de avaliar os antecessores pelo crivo da nossa época. É menos a vontade de reescrever a História, e mais a de a reduzir a insignificâncias sem o menor interesse para o presente, menos ainda para o futuro. Erradicam-se, quaisquer outras possibilidades de referência para lá das ditadas pelos líderes em funções, como se a humanidade estivesse a tatear os primeiros passos no mundo. A dita onda de violência anti património seria uma demência acéfala, se não fosse em grande parte alimentada por uma minoria manipuladora, apostada em derrubar o  passado. Depois de pôr a rebelião a rolar, deixa às multidões enfurecidas os estragos no terreno. Entrámos num jogo kamikaze equivalente, de algum modo, à razia criminosa do Daesh à cidade histórica de Palmira, que chocou – com toda a razão – o mundo desenvolvido. 

Em boa verdade, há anos que assistimos a uma estranha vigilância sobre a linguagem, tanto mais inexplicável quanto vivemos em contexto democrático, respeitador – garantem-nos – da liberdade de expressão. Pode alguma democracia saudável aceitar policiamentos das opiniões? Até a denominação eufemística de “politicamente correcto” revela a necessidade de camuflagem desse policiamento impiedoso e não-assumido, que actua como se estivesse legitimado para corrigir a seu bel prazer, de modo a impor determinada mentalidade. 

Convenhamos que o branqueamento de imagem no nome deste movimento, nos antípodas da sua prática, já deveria disparar campainhas de alarme. A práxis não podia ser mais suspeita (nisso, auto-denuncia-se), ao isentar-se de cumprir o que exige aos outros, porque há “uns” e “outros”. Quais igualdades! Um exemplo recorrente: não toleram o menor desvio ao padrão que querem instituir, porém, a primeira acusação é taxarem o alegado transgressor de intolerante fundamentalista e preconceituoso. Segue-se o linchamento de personalidade. Ou seja, atacam para esconder a sua própria arma de intolerância, além de desferirem um golpe ad hominem. A mentira descarada também ajuda à afirmação de poder, impondo-se pela intimidação, e não por alguma virtude ou outra fonte de autoridade moral verificável por todos. A crueldade é um ingrediente útil neste escrutínio abusivo e exagerado, pelo mesmo motivo por que os gangsters fazem gala em impor a lei do mais forte. É o seu trunfo. Intencionalmente, tudo é dito ao contrário, para criar um caos onde ninguém se entende mas a maioria fica acossada pela agressividade dos "vigilantes". Não, não pretendem debater nenhuma ideia, mas apenas descredibilizar quem se atreve a pensar por si e minar toda a possibilidade de diálogo mais profundo. Visam, assim, acabar com o pensamento pessoal, reduzindo o indivíduo a caixa de ressonância do chefe ou da suposta moda. Lenine, Trotsky e toda a elite bolchevique aplicaram tudo isto e, por isso, a revolução russa batalhou encarniçadamente no campo das ideias, das opiniões, acabando com qualquer veleidade de debate público (e de personalidade) não-controlado pelo Estado, isto é, pelos líderes. Apenas os dirigentes ou “o Partido” de um lado e do outro as "massas" ou o "colectivo" ou os “cidadãos” / “camaradas”/ "companheiros”, conforme as traduções locais nos diferentes pontos do planeta, esbatendo-se sempre a dimensão individual, única.

Orwell foi claro sobre o poder do vocabulário para formatar mentalidades. Basta rever a Revolução Francesa para lembrar a relevância da guerra em torno do domínio das palavras, travada com uma raiva difícil de perceber, se não tivermos presente que a linguagem tem enorme impacto no pensamento, ajudando a  estruturá-lo. “Cidadãos”, “igualdade”, “liberdade”, “revolucionários” versus “reaccionários”, “esquerda” versus “direita” (por causa do lugar onde se sentavam uns e outros, na Assembleia Nacional francesa) foram alguns dos conceitos-pivot daquela onda, que pretendia aniquilar os vestígios do passado e inaugurar uma nova era, a partir do zero. Finalmente, um progresso limpo, bramavam. Daí que os revolucionários mais extremistas reiniciem a contagem dos anos a partir do dia da sua chegada ao poder. De facto, o apagamento radical da história é parte integrante dos processos revolucionários de matriz totalitária.

Nega-se a mais elementar lealdade de reconhecer quanto cada geração recebe um notável legado que vem das que a precederam, cabendo-lhe depois transmiti-lo enriquecido aos filhos e netos. Na sua Encíclica mais recente «Fratelli Tutti» (Todos Irmãos), o Papa denuncia o «desconstrucionismo em que a liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero», num «individualismo sem conteúdo», numa «perda do sentido da história» (13º parágrafo). Denuncia, assim, as raízes de uma tirania sub-reptícia da actualidade, disfarçada de libertadora. 

É um engodo encarar o passado como uma carga escusada, apesar dos aspectos negativos que também chegam à nossa época, porque podemos triar o que vale a pena, com a prudência mínima de antecipar que nos poderá faltar clareza para aferir em pleno a validade de avanços audaciosos dos nossos antepassados. Assim tem acontecido com a investigação de matemáticos de outros séculos, com fórmulas criativas que só encontraram aplicação na linguagem informática. Todavia, alguma (ou muita) coisa pode ser descartada sem desgosto, cientes que do tempo do Hermitage não há necessidade de preservar todos os edifícios, embora o palácio que alberga o célebre Museu seja fundamental, etc.   

De 1821, subsiste um mapa-mundi com uma classificação muito curiosa dos países, baseada em noções que hoje só vingariam em documentos secretos para leituras muito segmentadas. Começa por estar centrado no Pacífico, em vez do Atlântico. Depois, ordena os países e as grandes regiões pelo grau civilizacional, do “iluminado” até ao “selvagem” [sic], interessando-se ainda pela quantidade estimada de população, pelo regime político e pela confissão religiosa. Adivinha-se serem dados de caracterização dos impérios ultramarinos, embora hoje seja consensual distinguir os Estados pelo grau de desenvolvimento, dos “desenvolvidos” aos “sub-“. Este exemplar pertence à colecção de David Rumsey: 


Se o mapa de oitocentos desafia os conceitos “inclusivistas” hoje na berra, já o filme rodado por Chaplin, há cem anos, mantém enorme actualidade, guarda-roupa à parte. O filme tem algumas invulgaridades como o facto de Chaplin quase não aparecer e de se tratar de um drama romântico, em vez de comédia. A seguinte cena emblemática de «A WOMAN IN PARIS» (1923) é rodada na sala de jantar de um restaurante de luxo, na cidade de luxo que Paris era e ainda é. Assim parodia com uma das coqueluches da sofisticação ocidental – o culto da gastronomia e todo o ritual circundante, como expoente da elegância e da “joie de vivre” (creio que “alegria de viver” fica aquém da expressão francesa consagrada). Impressionante confirmar que continuamos enfeitiçados pela comida, pelo status, pelo puro exibicionismo social, igual aos loucos anos 20 do século passado. Neste despique de convencidos, calha em cheio a arrogância do Chefe de cozinha, agastado pelos tiques arrivistas de um endinheirado a gostar de passar por gourmet…  É caso para dizer que o estatuto não é para quem quer, mas para quem sabe – como reza um antigo ditado popular, aqui ligeiramente adaptado. Irónico também as ‘delicatessen’ mais apreciadas por humanos fazerem as delícias dos porcos no curral. Parece uma aplicação à letra da expressão ‘podre de chique’.


Recuando ao século XVI, uma pintura holandesa retrata uma metrópole que exibe um cosmopolitismo à maneira do nosso tempo, incrivelmente vanguardista para aquele tempo. Curioso, os historiadores não hesitarem em associar aquele mosaico multi-étnico à cidade de Lisboa! Aquela praça da capital do império já leva as marcas de uma certa amálgama do estilo de vida português, mais espontâneo que ordenado, aberto, comunicativo, numa elasticidade sociológica natural, não-premeditada, onde (quase) tudo cabe. Desembocamos nesta misturada tranquila e sumamente subtil, basicamente por via intuitiva, sem necessidade de grandes tomadas de consciência:


Recuando para a era AC, ao tempo do grande rei Salomão, esbarramos na origem, quer dos arrivismos revolucionários, quer do móbil de vida dos putativos dandies, que vivem para impressionar os semelhantes. Afinal, têm (pelo menos) uma raiz comum, provavelmente partilhada pela primeira geração que povoou a terra: «Vaidade de vaidades! Tudo é vaidade. Que proveito tem o homem, de todo o seu trabalho, que faz debaixo do sol?  Uma geração vai, e outra geração vem; mas a terra para sempre permanece. Nasce o sol, e o sol se põe, e apressa-se e volta ao seu lugar de onde nasceu. […] Todos os rios vão para o mar, e contudo o mar não se enche […]. O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de novo debaixo do sol. Há alguma coisa de que se possa dizer: Vê, isto é novo? Já foi nos séculos passados, que foram antes de nós. Já não há lembrança das coisas que precederam, e das coisas que hão de ser também delas não haverá lembrança, entre os que hão de vir depois.» (Eclesiastes 1:2; 12:8)

Eleanor Roosevelt, a Primeira-Dama norte-americana do tempo da Segunda Guerra, gostava das máximas dos povos do deserto e uma delas ditava assim: "aprenda com os erros do passado, porque não tem tempo de os experimentar todos!" Até por isso, vale a pena reparar no que herdámos, escolher o que interessa e desse modo melhor preparar o futuro. 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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