09 novembro 2020

Dos escritores e da indústria dos cabelos *

A primeira mentira de Rui seria perdoada em qualquer referencial de justiça digno desse nome: afirmou, a pés juntos, que tinha 18 anos quando ainda lhe faltavam alguns meses. Precisava de dinheiro, de emprego, e ser ajudante de barbeiro pareceu-lhe algo decente. Talvez não condigno, que não conheceria a palavra, nem a ideia de que, tantas e tantas vezes, é o homem que dá dignidade ao trabalho, não a inversa. Começou a trabalhar num dia sombrio de Março, com uma chuva miudinha e um frio de enregelar os ossos: varria cabelos, lavava as alfaias próprias do mister de barbeiro, virava as almofada das cadeiras, porque uma almofada aquecida pelo cliente anterior parecia algo promíscuo, ia trocar dinheiro ao café da D. Ester, arrecadava uma esmola de alguém mais generoso, limpava espelhos, ouvia as conversas dos clientes: futebol, política, a carestia da vida e os gastos das esposas.

Mas Rui era um jovem adolescente diferente da maioria. Saía do serviço e, chegado a casa, lia desenfreadamente: Camilo, Eça, Alves Redol, Ruben A, as traduções de Balzac ou de Dumas, uma aventura breve por Hardy ou por Keats, as delícias dos brasileiros. Gastava todo o dinheiro que tinha em livros - de bolso, em segunda mão, em traduções menos boas, por empréstimo ou por oferta. Arrastou-se nesta actividade durante anos - primeiro como ajudante de barbeiro e, posteriormente, como barbeiro. Aos 28 anos cruzou-se numa livraria de bairro com Irene, professora de ioga recém-formada num curso à distância, com desejos de conhecer a índia onde, tinha a certeza, nascera o ioga, a meditação, o sossego da mente e a leveza do espírito. Também podia ter nascido o caril e o chicken masala, mas isso era-lhe indiferente. Casaram e seis meses depois nascia o Vítor, um rapagão de quase 4 quilos e uma madeixa preta que lhe caía sobre uns olhos ligeiramente estrábicos.

Rui lia muito e especializava-se nos cortes da moda: gestores, futebolistas, pessoas normais, um ou outro Secretário de Estado, banqueiros e bancários, astrónomos e astrólogos (duas classes que se diferenciam pela terminação o que, neste caso, não dá prémio). Irene queixava-se da ausência do marido, na sala ou na cama, já que ele se entretinha com Bernardo Santareno, Oscar Wilde, Yourcenar ou Jorge Amado nas horas em que não aparava bigodes, não cortava cabelos à francesa ou não se preocupava com o alinhamento das patilhas. Rui gostava de ler, amaldiçoava a vida de barbeiro - limitada e limitadora - e refugiava-se na leitura para criar um mundo seu, onde não entrava a comida indiana nem o sossego da mente. Lia, e desejava que Vítor escolhesse outra vida, que aquela de barbeiro não levava a nada. Mas Vítor começou aos 18 anos a varrer cabelos, a trocar dinheiro no café da filha da D. Ester, a ouvir conversas sobre os sacanas dos ministros, os incompetentes dos treinadores e as gajas que agora só queriam mandar. 

Um dia, Vítor participou que largava aquela vida. Jantavam em casa, ele e os pais: biryani de legumes, arroz doce caseiro, José Rodrigues Miguéis e a posição encarando o cão, que Irene tinha aprendido, não no contacto com um rafeiro na rua, mas num curso por correspondência com um, dizia ela com garbo, rabi indiano. Vitor endireitou-se, pousou a colher da qual retirou o último bago de arroz com aroma de vanilina, e olhou para o pai, que lhe disse. 

- Acho muito bem que mudes de vida filho; o ramo dos cabelos não te leva a lado nenhum.

- Não é bem assim, papá. Não vou largar o ramo dos cabelos...

- Como assim, Vítor? Achei que mudavas de vida para perseguir algo mais promissor...   

- Vou para cabeleireiro, papá...

- Como assim, cabeleireiro?

- Pagam mais, papá; é só isso...


JdB 

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Baseado num apontamento de Somerset Maugham em "A Writer's Notebook".

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