02 novembro 2020

Do segundo local de nascimento

Leio algures que Lawrence Durrell, autor de O Quarteto de Alexandria (entre outros livros) terá escrito: todos os seres humanos têm dois locais de nascimento, aquele em que vêem a luz pela primeira vez e aquele em que despertam para a realidade das coisas.

Achei a frase curiosa e dei por mim a pensar nisso. Fiz a pergunta a alguém que me respondeu de imediato tenho vários locais. Perguntei a outra pessoa (de uma geração acima) que também se inclinou para ter vários. Olho para a minha vida, tanto quanto me posso lembrar do que se passou desde que nasci. Qual foi o meu segundo local de nascimento? A resposta é imediata: tenho dois sítios, Rio de Janeiro em 1975 e Harare em 2008. Fui imensamente feliz em muitos sítios, desde locais de férias na juventude como outros locais noutras partes da minha vida. No entanto, foi naqueles dois sítios, separados por 33 anos, que despertei para a realidade das coisas, para usar a expressão de Durrell.

Tive a sorte de ambas as estadias, tanto no Rio de Janeiro como em Harare, estarem recheadas de momentos felizes, pese embora representarem estados de espírito muito diferentes: um jovem de 17 anos espantado com o que via - língua, praia, calor, sensação de erotismo, liberdade, praias dfirentes, gente diferente - e um homem de 50 anos, num momento de viragem da vida, que se encantou com o espaço a noção diferente do tempo, a afabilidade das pessoas, os jacarandás e os bandos de crianças com fardas de um tempo britânico desaparecido, a sensualidade ou a ausência de noção do pecado da carne, a cor de tudo.

Podemos despertar, nos rios de janeiro ou nos harares que todos temos, para a realidade das coisas felizes, como me aconteceu a mim. Mas podemos despertar para a realidade das coisas menos felizes, como me referia alguém que, criança na Guiné, no tempo ainda da guerra, sentiu medo pela primeira vez. Também esta pessoa despertou para a realidade das coisas: não a sensualidade dos corpos ou a extensão da paisagem, mas o medo, puro e simples, como algo que existe.

O que nos ocorre pensar quando confrontados com a pergunta onde despertou para a realidade das coisas? Vem-nos sempre à memória sítios felizes ou tanto faz? O que tem mais impacto na nossa lembrança do passado?

JdB

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