26 novembro 2020

Da santidade (IV)

Com o texto abaixo termina a troca de correspondência com um bom e douto amigo sobre estas coisas da santidade. Vale a pena ler.

***

Meu caro João,

Que maravilha ter podido ler (mais) este seu texto. Reforça a ideia de que a Igreja é uma casa com muitos recantos, tantos quantos os necessários para todos nos sentirmos bem nela. É inegável que cada um de nós tem uma “visão” ideal de Igreja, gostaríamos que o nosso cantinho da casa de Deus fosse maior e muito mais central do que os outros, mas os verdadeiros crentes (e não estou a fazer juízos sobre ninguém, mas a tentar convencer-me humildemente disso mesmo) saberão que a própria universalidade da Igreja não se compadece com leituras pessoais e redutoras dela.

Muitas vezes me perguntam se gosto do Papa. Ora para me ouvirem criticar este ou para me verem zurzir o antecessor. Não me lembro de alguma vez ter dado a resposta que queriam. Porque sempre me recusei a avaliar os Papas. Com isto não quero dizer que não se possa fazê-lo, como muito bem demostrou o João. São poucos os casos reservados à infalibilidade do Papa. As mais das vezes, o Papa fala, com a sua autoridade, é certo, mas despido da suposta infalibilidade. Não é por ignorância disto que me coíbo de tecer juízos sobre o Papa. É mesmo por presumir que o que ele diz é acertado. A presunção, como é de regra, é ilidível, mas não ouso contrapor à opinião do Santo Padre a minha… Ora, a minha opinião não é menos legítima do que a dos outros, mas sinto-a muito menos qualificada do que a do Santo Padre ou dos mais altos dignitários da Igreja. Note que quando assim falo, não estou a defender a validade deste procedimento para terceiros (e quero muito discordar do D. Januário Torgal Ferreira). Estou apenas a explicar o meu comportamento. O João sabe melhor do que eu que muitos dos nossos amigos e conhecidos nos tentam apanhar na curva do nosso catolicismo. Os casos que referiu (celibato dos padres e sacerdócio feminino) são típicos desse exercício. Eu respondo sempre: é-me absolutamente indiferente que os padres casem ou que as mulheres sejam ordenadas. Acho que há gente mais talhada do que eu para pensar nessas coisas e para dar uma resposta adequada a cada momento da vida da Igreja. Mas os leigos não podem pensar nisso e emitir a sua opinião? Podem… como podem também preferir não pensar nisso ou não emitir opinião, como faço eu. Aliás, faço isso bem sabendo que quase sempre o debate público sobre estes aspectos da vida da Igreja é alimentado por quem não pertence a ela e quase sempre é orientado pela vontade de fustigar os seus alicerces. Repare, João, como em debates sobre aspectos da nossa vida que não são indiferentes à Igreja – aborto, casamento gay, eutanásia – há sempre católicos de serviço (leigos, quando não padres ou bispos) dispostos a defender o indefensável.

Quanto ao tema…

Insisto no perigo que há em convertemos o catolicismo numa ética social. A “bondade”, a bondade de que falo, supõe a alteridade. Nesta minha perspectiva, não há homens bons. Há homens capazes de coisas boas. Dar água a quem tem sede, vestir os nus, matar a fome aos famintos, visitar os enfermos… Estas obras de misericórdia são boas, sendo certo que a fé sem obras é morta. Julgo que o João percebeu o que quis dizer quando sublinhei esta relação íntima com  Jesus. Aquele toque no manto de Jesus, imperceptível aos olhos humanos… Não são as obras que fazem a fé. E é a fé, mais do que as obras, que relevam para o reconhecimento da santidade.

[Permito-me partilhar duas experiências recentes. Uma em Maio último, quando prestava o meu tradicional apoio aos peregrinos de Fátima. Acredito que Jesus caminha em direcção a Fátima com aquelas pessoas. E costumo dizer que nos olhos de algumas dessas pessoas vejo a interpelação de Jesus. Sinto que aquelas estradas da Azambuja são o meu caminho de Emaús. Quantas e quantas pessoas se cruzam com Jesus, conversam com Ele, e não O vêem. Eu vi-O nos olhos duma miúda de 20 anos talvez, que nem sequer aceitou a nossa ajuda. Outra, ontem mesmo, na Procissão do Senhor dos Passos da Graça. No meio da Mouraria, naquelas ruas estreitinhas, pára o andor. No meio daquele mar de gente, uma criança (pretinha, mas aloirada, não sei bem descrever) chorava. Pedia à mãe o que eu não conseguia perceber. A certa altura, um Irmão do Senhor dos Passos pega na criança e leva-a a tocar o manto de Jesus. Calou-se imediatamente. Nem sei se era isso que o miúdo queria. Era provavelmente apenas uma birra, como outra qualquer. Mas Deus falou-me por ela. Quisera eu chorar para tocar no manto de Jesus…  ]

Concordo que o processo de canonização está sujeito a discordâncias. Mas penso que o João está a dar um ênfase excessivo aos “milagres”. Porque é que o Frei Bartolomeu dos Mártires está isento dos ditos milagres e a Madre Teresa não? A pergunta sugere uma situação que não tenho por verificada. Ou seja, parece que o Frei Bartolomeu, ao contrário da Madre Teresa, teve um caminho facilitado em direcção aos altares. Não é seguramente isso que se passa. Sucede apenas que a o Frei Bartolomeu morreu em 1590, há mais de 400 anos, e a Madre Teresa morreu ontem. A Santa Sé terá verificado que são tantas e tão expressivas as virtudes que concorrem na pessoa de Frei Bartolomeu que tornam possível à Igreja (mais de 400 anos depois!) considerá-lo Santo. Este reconhecimento é, como disse, meramente declarativo, pois que ele será Santo (a crer que o é) desde que morreu. O caso da Madre Teresa não precisou de esperar tanto tempo, porque foram, para além do notabilíssimo exemplo de vida, testemunhadas manifestações evidentes da sua comunhão com os Santos e com Deus. Ela não teve um tratamento de desfavor.

Aliás, se há coisa que a Igreja com a sua proverbial prudência nos ensina é a  respeitar o tempo. Não impressiona que a Igreja se interesse pela canonização de uma pessoa que morreu há 400 ou há 500 anos? Nós é que somos tentados a querer ver na Igreja o nosso tempo, o nosso ritmo, medido pela nossa própria finitude. Ainda há dias lia sobre o Júlio Dantas. Considerado um dos mais brilhantes intelectuais da primeira metade do século XX. Quem é o Júlio Dantas, hoje? Ninguém. O Júlio Dantas, hoje, não foi ninguém. O tempo apagou-o… e o que é delido pelo tempo não tem a eternidade. Hoje, as letras não recordam o Dantas. Mas a Igreja não esquece o Frei Bartolomeu. Mal comparado, veja o que se passa com o Panteão. Admite-se que lá dê entrada defunto com menos de 25 anos de morto?  A Pátria agradecida só a podemos ver 25 anos depois do óbito… se não for pouco tempo… ante disso, nunca! A comoção é episódica. Como as revoluções. Favorecem picos de falsas unanimidades…

Muitos verão na vida da Madre Teresa a Sua santidade, sim. E não virá daí mal ao mundo. Mas vox populi não é vox Dei, João. A vox populi escolheu Barrabás. A vox populi exigiu a crucificação de Jesus. Talvez não devêssemos ficar tão deslumbrados com os encantos da democracia… ou com o somatório de opiniões irrelevantes.  

Um forte abraço, muito agradecido por estes bocadinhos tão saborosos…

NP

   

1 comentário:

Anónimo disse...

Subscrevo de "A" a "Z" estas considerações tão sábias. Soubesse eu expô-las com tanta clareza. Bem lembravam os Evangelhos: a boca fala da abundância do coração. Muito obrigada pela partilha de todas estas reflexões interessantíssimas e super actuais. MZ

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