01 abril 2021

Das semelhanças entre povos díspares

A informação é antiga e usada para diversos fins: para explicar os fenómenos da linguagem, para impressionar os que ainda se impressionam, para utilização como citação que abre sorrisos de surpresa e olhares de vago espanto, e como espantalho que afasta os silêncios que diminuem a esperança de vida. Aparentemente, os esquimós têm 15 expressões para descrever a neve. Podem não ser os esquimós, mas os lapões; e podem não ser 15 mas 13. Nós, portugueses, não temos nenhuma. Também aqui podem não ser os portugueses, mas os espanhóis, e podem não ser nenhuma, mas uma.

À semelhança dos esquimós (e vamos ficar com os esquimós, e com o número 15) os portugueses também têm 15 expressões (são bastante mais do que 15, de facto) - mas para classificar o bacalhau. Se imaginarmos um transeunte a partilhar, no interior aquecido de um igloo, que os portugueses tem 15 formas de classificar o bacalhau, perceberemos facilmente o espanto e o sorriso da família aborígene. Isto, claro está, presumindo que a familia sabe o que é um bacalhau. Apesar da diferença de latitudes, há algo que nos aproxima: a paisagem que nos circunda e domina, seja ela meteorológica ou piscatória.

Para nós, países do sul, neve é neve. Pode estar mole, pode estar rarefeita e, admito, pode estar outras coisas; mas é neve adjectivada, não é um neologismo. Para um esquimó, dizer *!#^!% (que é uma das 15 expressões para neve) é uma informação muito relevante: exige precauções ou não, exige trenó ou não, impede a saída do igloo ou não; um esquimó dizer $"@±? (outra das 15 expressões) quer dizer exactamente o contrário. Na língua esquimó, cada uma das 15 expressões é uma regra de conduta, uma norma de execução imediata, uma instrução. Em termos matemáticos, x => y (para quem está mais longe da lógica, eu traduzo: xis implica ípsilon).

A neve do esquimó é o bacalhau do português. Dizer à brásà gomes de sácom broa, ou mesmo à Conde da Guarda, é uma expressão que define uma instrução semelhante à que recebe o esquimó; no caso do português, traduz-se em aquisição de ingredientes e em atenção aos tempos de cozedura. Em termos matemáticos x => y, apesar de x e y serem diferentes entre si e na dicotomia neve / bacalhau.

Para o esquimó, a neve é o seu habitat; e é tão desolador como a sua gastronomia. Não será provável que o iúpique conheça o conceito de refogado (nem sequer de estrugido, apesar da expressão ser vulgar numa latitude que lhe é mais próxima) nem que o inupiate se atire a uma maionese em dias soalheiros. Por sua vez, para o português a ideia de neve é um conceito já não exótico mas, mesmo assim, mais dispendioso do que o bacalhau: a neve quando cai é para todos, o bacalhau só é gratuito na música pimba.

Em termos pavlovianos não há diferença entre as várias expressões para neve (do esquimó), e as várias expressões para bacalhau (do português). Ambas, se proferidas em voz alta por um técnico de bata branca, suscitam (re)acções imediatas, que vão da recolha dos huskies à aquisição de noz moscada, da demolha da posta à protecção do igloo. É nesse sentido, e não na forma carinhosa como olham para os velhos, ou na repulsa natural pelo incesto, que o português e o esquimó se assemelham, fazem parte de uma realidade comum, integram a mesma comunidade humana.

JdB 

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