A MEMÓRIA DOS POVOS É PATRIMÓNIO VALIOSÍSSIMO
Talvez seja arrojado tentar ler o passado recente com menos de um século de distância. Basta constatar que só uma só uma minoria (creio) revelou o devido distanciamento crítico, a lucidez e o arcaboiço cultural necessários para interpretar com argúcia os sinais demasiado próximos do tempo do observador. Vale a pena nomear, ao menos, os conhecidos do grande público, como: Vasco Pulido Valente, Eduardo Lourenço, José Augusto Gil, António Barreto, Rui Ramos, Jaime Nogueira Pinto, Jaime Gama, Pe.Manuel Antunes, SJ, arriscando omitir nomes que devessem constar nesta amostragem simbólica.
Há também vozes menos condecoradas de mais gente com craveira e coragem, habitués de crónicas e de intervenções discernidas e, em geral bem informadas, como as de: Teresa de Sousa, João Pereira Coutinho, Alexandre Homem Cristo, João Vieira Pereira, Daniel Bessa, Helena Garrido, Luís Marques, Paulo Tunhas, João Miguel Tavares, Sebastião Bugalho, José Miguel Júdice, José Manuel Fernandes, Rodrigo Moita de Deus, em vários temas também a Raquel Varela e ainda outros. É um mero elenco possível para confirmar que há razões para não desesperarmos da inépcia e do facciosismo de inúmeros comentadores badalados.
De certo modo, foram as novas plataformas digitais que melhor começaram e continuam a dar voz às perspectivas menos alinhadas com o politicamente correcto, a que a maioria se vergou para fazer carreira.
Um dos temas de imediato capturado pela narrativa reducionista, eivada de carga ideológica marxista-trotskista do tempo do PREC, foi a África portuguesa e a complexidade de um passado turbulento, agitado pela Guerra Colonial e pela descolonização. Não por acaso, a memória sobre esses dois fenómenos ficou logo refém do discurso da extrema esquerda, após o vazio de poder que se seguiu à reviravolta política iniciada no dia 25 de Abril de 1974.
A prazo, foram os povos de África os mais penalizados pelas manobras torpes, que aproveitaram as fraquezas do período pós-revolucionário, atirando-os para o domínio do totalitarismo soviético, enquanto clamavam por democracia e liberdade. Curiosamente (ou só mais do mesmo), nada dessas maquinações foram assumidas, nem contadas com isenção ou o menor respeito pelos factos. À pala do mérito inquestionável – a meu ver – da transição para a democracia, efabulou-se, escondeu-se, mentiu-se para omitir os atropelos à liberdade perpetrados durante o PREC mas, acima de tudo, durante a saída caótica de África. Centenas de milhares foram abandonados às hordas assassinas de revolucionários fabricados à pressão, basicamente sedentos de sangue e de saque. Os que puderam fugir, criando a célebre onda de “retornados”, viram-se injustamente expropriados dos haveres de uma vida de trabalho. Quantos dos sobreviventes escaparam, a custo, às catanas de uma turbamulta selvática, com pouco mais critério do que a cor da pele. Por vezes, nem isso, matando a eito.
Omitiu-se e mentiu-se para ignorar o número avultado dessas vítimas maiores das novas forças antidemocráticas, que avançaram à medida que o exército português abandonava posições na África austral, perdendo-se o único garante de alguma ordem pública.
Claro que não se pretende negar políticas iníquas também praticadas pelas autoridades lusas naquelas latitudes, sobretudo no século XX, após as repartições desenhadas pelas potências europeias no Congresso de Berlim (1884-85), que acabaram por minar as pretensões portuguesas plasmadas no célebre mapa cor-de-rosa, para unir Angola com Moçambique. Só que nem tudo foram erros, pelo que será igualmente válido lembrar estratégias arrojadas que Portugal adoptou nas suas potências africanas, algumas reveladoras de um humanismo bem à frente do seu tempo, com nativos a governar ipso facto, mulheres a pontificarem sobre domínios assombrosos, gentes de outras etnias não-caucasianas como Pares do Reino e merecedores de títulos nobiliárquicos.
Uma série lançada no final de 2020 e intitulada «QUEM MANDAVA NA ÁFRICA PORTUGUESA» revisita os vestígios da passagem portuguesa por lugares sub-saarianos. Entrando no olho do furação, a série desmonta vários dos preconceitos mais propalados por uma certa visão simplista da história, que descarta contributos interessantes e originais implementados por Portugal no Hemisfério Sul. Enfrenta, assim, um passado diabolizado por muitos dos que promoveram ou, pelo menos, cederam a uma descolonização intencionalmente precipitada e atabalhoada. Em jeito de preâmbulo ao primeiro episódio, explica-se: «Querem convencer-nos de que, na relação entre Portugal e África, a oposição se fazia entre europeus dominadores e locais submetidos. Mas não é verdade. Ao longo dos séculos, Portugal implantou-se no continente africano através de elites locais que foram sendo os principais, e frequentemente os únicos, agentes de aculturação portuguesa. No primeiro episódio de Nova História, a NP faz justiça aos africanos que construíram a Portugalidade africana.»
Penso que fazer justiça à história honra a memória de quem esteve por bem na Revolução dos Cravos, desejoso de proporcionar uma auto-determinação genuína aos povos africanos e de aproximar Portugal do pelotão de países mais desenvolvidos e livres do mundo ocidental, como defendia Francisco Sá Carneiro e tantos outros de diferentes quadrantes políticos, mas de convicções igualmente democráticas.
A propósito do 25 de Abril, é deliciosa a história decorrida entre Sophia de Mello Breyner Anderson e a sua amiga Maria Helena Vieira da Silva, a quem a escritora encomendou logo um cartaz sobre aquele dia, dias depois do golpe de Estado. A mais espantada com os traços impressos na tela era a pintora, que explicou a Sophia ter feito um segundo desenho. Só que também esse desaguara na mesma imagética enigmática, pejada de signos conventuais! Foi a poetisa quem desvendou o mistério: como boa observadora das formas, a pintora inspirara-se na paisagem urbana mais fotografada daquele dia – a acompanhar a subida das chaimites pela calçada do Carmo acima até desembocarem no Largo homónimo, percorrendo um trajecto pontilhado de capelas, Igrejas e, por último, as linhas marcantes das ruínas do Convento do Carmo. Riram-se ambas, concordando com a interpretação cristalina de Sophia, que adorara os dois cartazes e resolvera trazer o par para Lisboa.
Título A poesia está na rua, com 70 x 50 cm, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian. |
Título 25 Abril 1974, com 73 x 44 cm, também editado pela Fundação Calouste Gulbenkian |
As memórias de Vieira da Silva sobre esse episódio ditam assim: «Aqui há dois anos aconteceu-me uma história curiosa. Uma das minhas amigas, Sophia Andresen (…) pediu-me que fizesse um cartaz para festejar o 25 de Abril, ‘Faz o que te apetecer’ — disse-me ela — ‘a multidão, a rua, o que quiseres, mas é urgente.’ Reflecti, e pus mãos à obra, deixando-me guiar pelo que naturalmente me ia vindo. Quando acabei, olhei para o que tinha feito e fiquei muito inquieta: parecia um vitral, via-se uma igreja e umas ruínas. ‘Neste momento lá em Portugal’ — pensei eu — ‘a política tem prioridade, vão dizer que fiz uma pintura religiosa. Não pode ser, tenho que projectar outra coisa’ e comecei a traçar uma rua antiga de Lisboa com uma multidão e cravos vermelhos. Quando a minha amiga voltou, escolheu o primeiro desenho (acabou por levar ambos). Perguntei-lhe: ‘Não irão dizer que é uma beatice?’ — ‘Não — disse ela —, ‘foi ali mesmo que tudo se passou.’ Lembrei-me então de que ao ler as notícias de Portugal sempre imaginava as manifestações descritas diante de uma igreja que eu conhecia muito bem e da qual gostava, mas que esquecera por completo enquanto trabalhava. E, no entanto, tenho boa memória. O segundo cartaz era uma rua muito próxima dessa igreja, mas não fora ela o centro de tudo o que se passara e sim a tal ruína gótica, o Convento do Carmo. Como tudo isto é misterioso, não é verdade?”
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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