Sábado fui ao Crisma, seguido de Primeira Comunhão, de um rapaz que me é próximo. Foi sobre ele que escrevi há poucos anos: entrou numa casa cheia de história, de memórias, de energias, de presenças e ausências marcantes, e não sentiu nada: de disco rígido vazio perante a vida e o futuro, tudo era novo e agradável para ele; aqueles dias que passou naquela casa foram mais uma etapa no processo de formação da sua identidade.
Penso que terá passado a moda dos santinhos que as crianças que faziam a Primeira Comunhão davam aos familiares e amigos. Este rapaz de quem vos falo deu-me uma fotografia dele, com o tamanho de uma cartão de crédito. Segura uma vela sorridente; na orla superior, logo a seguir ao petit nom com que aquela geração me trata, uma frase singela: que Deus o proteja sempre.
(Hoje, ao pensar neste texto, dei por mim a duvidar: há diferença entre desejar que Deus nos proteja sempre ou Deus nos proteja para sempre?)
Retomo o tema. Queremos que Deus nos proteja de quê? O primeiro impulso será desejar a protecção dos inimigos externos: as doenças, nossas e dos que nos são mais próximos, a falência, a infelicidade, o insucesso, a morte prematura. Talvez raramente desejemos que Deus nos proteja de nós próprios, apesar do verso (penso que atribuído erradamente a Pessoa): Senhor, livra-me de mim.
Hoje ouvi uma frase curiosa. Alguém mostrava um grande desconhecimento - ou talvez apenas espanto - por algo. O interlocutor disse-lhe apenas: a sua surpresa é um índice da sua ignorância. Olhando para a fotografia do rapaz que segura uma vela sorridente, talvez eu tenha pensado nas grandes vantagens da ignorância. Na verdade, só o ignorante se espanta, só o ignorante se surpreende, só o ignorante abre a boca feliz por aprender alguma coisa.
Há dez anos escrevia a um anjo algo que se relaciona com a divagação acima:
Sabes, cada vez mais tenho a certeza de que não invento nada, não crio nada, não deslindo nada. Uso as palavras que outros inventaram, tenho as sensações que outros já definiram. E, no entanto, sinto muitas coisas como se fosse o pioneiro delas no mundo. Vejo-me como uma criança que usa uma gravata pela primeira vez, e que responde ao fatalismo do "já muitos a usaram antes de ti..." com o prazer singelo da descoberta: "pois eu gosto dela como se fosse o primeiro".
Que Deus o proteja sempre. De quê? De mim, sobretudo. E que não me tire a capacidade do espanto, da surpresa, do riso infantil de quem vê coisas já muito vistas como se fosse a primeira vez.
JdB
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