Valter Luís (nome próprio, nome próprio) não andava numa fase famosa da vida. Em bom rigor, não seria necessário que o cronista que agora conta a história interpretasse sinais psíquicos e os transformasse em palavras. Era ele próprio, Valter Luís, que o fazia, sentado num sofá confortável do consultório modesto da sua psiquiatra.
- não ando numa fase famosa da vida...
Dizia isto e olhava para a rua, para um parque de estacionamento de um supermercado onde as pessoas se abasteciam de inutilidades em promoções, saindo ajoujadas de sacos brancos e pagamentos diferidos.
- sabe, senhora doutora, esta semana são os verdes: brócolos, couve galega, ervilhas, favas, talvez um lombardo. Já reparou que o espinafre é o terylene dos vegetais? Chega-se-lhes um pouco de fogo e ficam em nada. Já cozinhou espinafres?
Depois, compenetrado que aquela devaneio se pagava a preço de consulta, pelo que o tempo não era de banalidades, repetiu a frase do dia, como se daí decorresse a esperança de uma benção especial, ou de uma luz redentora vinda não se sabe de onde.
- não ando numa fase famosa da vida...
E Valter Luís (nome próprio, nome próprio) queixava-se de estar sozinho no mundo, ainda que rodeado de uma mulher, de amigos, de colegas de profissão ou de canasta aos primeiros sábados do mês. Era um palrador que não tinha interlocutor, um gourmet que viva com uma vegetariana niquenta, um adulto fogoso para quem o olhar desinteressado e bocejante da mulher transformava as noites íntimas numa experiência impessoal, um ex-atleta de alta competição rodeado de sedentarismo burguês e fumador.
- não ando numa fase famosa da vida...
E a psiquiatra, ajeitando o vinco de umas calças elegantes, olhando de soslaio para o relógio, para a fotografia da sua bebé deitada muito direita numa alcatifa felpuda e para as promoções da semana, falava-lhe na infância, no direito à felicidade, nas coincidências significativas, nas novas tendências de interpretação dos sonhos e nos químicos recentes que não provocavam náuseas. Mas Valter Luís (nome próprio, nome próprio) ouvia pouco, porque se lamentava da solidão em que viva, sem companhia na cozinha e com uma ausência na cama.
Levantou-se, despediu-se e desejou à médica uma Santa Páscoa, não porque fosse católico, mas porque a frase lhe parecia bonita, redonda, auditiva, correcta, sorridente apesar do peso que via nos crentes e do milagre da ressurreição em que descria, cepticismo esse agravado pela fase pouco famosa em que viva. O milagre é uma prerrogativa dos optimistas, porque a fé é dos optimistas, pensava ele... O milagre é uma espécie de ciência mais evoluída, não acessível ainda ao humano, apenas ao divino. É um acontecimento antes do seu tempo, no fundo.
Chegou a casa, um apartamento modesto com vista para um beco, e foi para a cozinha preparar o almoço pascal, apesar da descrença no túmulo vazio, na felicidade da vida e nas noites tumultuosas de gestos e velas com cheiro a sândalo. Dez minutos mais tarde, S. José Cristina (nome próprio, apelido) surgia-lhe estranhamente cedo, vinda do call center onde trabalhava. Vestia uma lingerie toda roxa, que os tempos impunham a cor, mesmo aos incréus. Apareceu-lhe sem pudor nem bocejo, provocante, com aquela figura longilínea de quem parecia uma libelinha a preparar um flic-flac. Sorriu-lhe provocante e carnívora, nos vários sentidos da palavra:
- queres que tempere o cabrito? Ou compraste borrego?
JdB
* publicado originalmente em 27 de Abril de 2017
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