A FORÇA TEMÍVEL DAS PALAVRAS
Claro que o perigo está nas pessoas que esgrimem a linguagem maliciosamente, manipulando o próximo, ocultando, mentindo, deformando a realidade segundo a sua conveniência. Precisamente, esta ameaça que George Orwell denunciou com mestria ao dissecar o fenómeno da novilíngua, sempre constituiu um perigo, porque o poder das palavras é uma constante, pelo que é um alvo incontornável de tribunos pouco escrupulosos, desde tempos imemoráveis. Extraordinário e bizarro é a função demasiado diversa e controversa atribuída à linguagem pelos filósofos de todas as eras. A história conta-se por si e fica-se atónito com algumas das teses defendidas. Numa linha cronológica, observam-se guinadas regressivas e tortuosas, difíceis e perceber, tal o descaramento.
Na Grécia antiga, Sócrates (470-399 a.C.) vê-a luminosa, considerando que «A palavra é o fio de ouro do pensamento» . Também o discípulo amado a aclama na abertura do seu Evangelho, revelando-lhe o sentido mais sagrado: «No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. (…) Tudo foi feito por ele; e nada do que tem sido feito, foi feito sem ele. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.» (João 1:1-4)
No seu estilo lúcido, o dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616) dispara o sinal de alarme sobre a ambivalência que pode comportar: «Algumas palavras podem esconder outras.» O famoso escritor de fábulas gaulês Molière (1622-1673) delineia a magna missão da linguagem, na senda da visão socrática: «A palavra foi dada ao homem para explicar os seus pensamentos, e assim como os pensamentos são os retratos das coisas, da mesma forma as nossas palavras são retratos dos nossos pensamentos.».
O filósofo francês do Iluminismo Voltaire (1694-1778) não tem ilusões sobre o perigo do mau uso da linguagem: «Ils ne se servent de la pensée que pour autoriser leurs injustices et n'emploient les paroles que pour déguiser leurs pensées.».
O clérigo anglicano Robert South (1634–1716) destrinça entre uns e outros, mas introduz uma nota insólita ao tomar por sábio quem dissimula: «A palavra foi dada ao comum dos mortais para comunicar os seus pensamentos e aos sábios para os disfarçar.»
O ardiloso aristocrata francês e clérico, que fez carreira durante a Revolução Francesa e depois com Bonaparte e os seus sucessores, Charles Talleyrand-Périgord (1754-1838), professava a hipocrisia sem rodeios: «A palavra foi dada ao homem para disfarçar o pensamento.»
O escritor francês Stendhal (1783-1842) assume o pior propósito, que tinha sido (compreensivelmente) muito recomendado por alguns dos protagonistas da Revolução Francesa «A palavra foi dada ao homem para esconder o seu pensamento.»
O dramaturgo sueco August Strindberg (1849-1912) não tem ilusões, mas fixa-se na solução mais segura e preferida: «Eu prefiro o silêncio; no silêncio ouvem-se os pensamentos e vê-se o passado, o silêncio não pode esconder… o que as palavras escondem.» Curiosamente, o Nobel português da Literatura, também confia mais no silêncio e no seu efeito regenerador sobre as palavras. Interpelativo um homem de palavras confiar mais no silêncio. Em 1971, sem a presença do silêncio, as palavras soavam-lhe temíveis…
«A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é a erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra é poeira nos olhos e olhos furados. A palavra não mostra. A palavra disfarça.»
José Saramago como jornalista da crónica publicada no vespertino “A Capital” e depois em livro lançado de 1971
«As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes. Algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como carraças: vêm nos livros, nos jornais, nos slogans publicitários, nas legendas dos filmes, nas cartas e nos cartazes. As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou azedas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. Há muitas palavras.
E há os discursos, que são palavras encostadas umas às outras, em equilíbrio instável graças a uma precária sintaxe, até ao prego final do Disse ou Tenho dito. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e fecham sessões, se lançam cortinas de fumo ou dispõem bambinelas de veludo. São brindes, orações, palestras e conferências. Pelos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E depois as palavras dos discursos aparecem deitadas em papéis, são pintadas de tinta de impressão - e por essa via entram na imortalidade do Verbo. (…) É o dilúvio universal, um coro desafinado que jorra de milhões de bocas. A terra segue o seu caminho envolta num clamor de loucos, aos gritos, aos uivos, envolta também num murmúrio manso, represo e conciliador. Há de tudo no orfeão: tenores e tenorinos, baixos cantantes, sopranos de dó de peito fácil, barítonos enchumaçados, contraltos de voz-surpresa. Nos intervalos, ouve-se o ponto. E tudo isto atordoa as estrelas e perturba as comunicações, como as tempestades solares.
Porque as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que não se oiça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra é poeira nos olhos e olhos furados. A palavra não mostra. A palavra disfarça.
Daí que seja urgente mondar as palavras para que a sementeira se mude em seara. Daí que as palavras sejam instrumento de morte – ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do acto.
Há também o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão.»
José Saramago - crónica publicada no livro “Deste Mundo e do Outro”,
Editorial Caminho, Lisboa, 4.ª edição, 1997.
A sabedoria popular dos homens do deserto forjaram vários provérbios, destacando-se um de maior densidade, que deixaram nas paragens por onde passaram, nomeadamente em Portugal: «a palavra é prata, o silêncio é ouro». Outro provérbio árabe recomenda uma sobrevivência comedida, à prova das turbulências da vida, sem ousadias. Talvez talhado por uma ‘medida mais curta’ repleta de senso comum, embora tenha boa aplicação em inúmeras circunstâncias: «Não diga tudo o que sabe; Não faça tudo o que pode; Não acredite em tudo que ouve; Não gaste tudo o que tem, Porque: Quem diz tudo o que sabe, Quem faz tudo o que pode, Quem acredita em tudo o que ouve, Quem gasta tudo o que tem; Muitas vezes diz o que não convém, Faz o que não deve, Julga o que não vê, Gasta o que não pode.»
O poeta-escritor de origem irlandesa Oscar Wilde (1854–1900), viciado em aforismos e cioso de descortinar a verdade mais indecifrável, explora sempre novos ângulos: “Words! Mere words! How terrible they were! How clear, and vivid, and cruel! One could not escape from them. And yet what a subtle magic there was in them! They seemed to be able to give a plastic form to formless things, and to have a music of their own as sweet as that of viol or of lute. Mere words! Was there anything so real as words?” Acabou por poupar as palavras, mas não a hipocrisia mais comum nos seres humanos: «As nossas caras são verdadeiras máscaras que nos foram dadas para ocultarem os pensamentos.»
No século XX, dois idealistas recuperam o alcance mais nobre do que se profere. Fernando Pessoa (1888-1935) oferece-lhe variadas conotações, todas grandes: «Se ser Homem é pouco, e grande só / Em dar voz ao valor das nossas penas / E ao que de sonho e nosso fica em nós / Do universo que por nós roçou; / Se é maior ser um Deus, que diz apenas / Com a vida o que o Homem com a voz: / Maior ainda é ser como o Destino / Que tem o silêncio por seu hino / E cuja face nunca se mostrou.» No poema a "D.Pedro", na MENSAGEM, o poeta afirma de outro modo o valor incomensurável da palavra: «Fiel à palavra dada e à ideia tida. / Tudo o mais é com Deus!»
Gandhi (1869-1948) fixa-se igualmente no lado mais solar da realidade: «Mantenha os pensamentos positivos, porque os seus pensamentos tornam-se as suas palavras.»
Com sentido de humor, o poeta, músico-compositor brasileiro Maviael Melo, recicla a velha piada, que mostra a distância abissal entre a condição de turista e a de imigrante em determinado sítio, ilustrando com a metáfora-limite do inferno. Melo adapta-a ao despudor com que muitos políticos seduzem os eleitores com palavras apetecíveis, vendendo fantasias à caça do voto acrítico, quais encantadores de serpentes:
A resposta do desafiado não se fez esperar e, com luva de pelica encostou a BMW às cordas, num jogo certeiro com o logo da marca:
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