19 janeiro 2022

Vai um gin do Peter’s ?

PEÇAS DE ARTE, JUNTO À AV. DA LIBERDADE

No cruzamento da rua Rosa Araújo com a Mouzinho da Silveira, à vista da casa que alberga a Cinemateca, fica situada a Casa-Museu Medeiros e Almeida, repleta de peças lindas, bem expostas e invulgarmente bem documentadas. Na newsletter mensal, costuma sugerir-se a ‘peça do mês’, para ajudar a redescobrir o rico acervo daquela Fundação, muito portuguesa desde a origem, o que é raro com aquela qualidade.

Há um ano, a obra em destaque foi um contador alemão, das oficinas de Augsburgo, famosas, a partir do séc. XVI, pela produção de móveis refinados em madeiras exóticas, casca de tartaruga, madrepérola, pedras duras, prata, ouro, gemas, marfim, etc., feitos por uma equipa de artesãos de marcenaria, relojoaria, miniaturas e ourivesaria. Os palácios e melhores casas da Europa encheram-se de espelhos, contadores, relógios, altares, relicários, estojos, autómatos provenientes daquela cidade bávara. 

O contador da Medeiros e Almeida soma ao esplendor da peça de mobiliário, um relógio precioso e incrustações de pintura e de ourivesaria num conjunto magnífico. Não cede (creio) ao risco dos virtuosos, que tendem a pecar por excesso e puro exibicionismo. Aqui, beleza e utilidade formam uma simbiose notável. 

O contador aberto, sendo bem visíveis os três corpos que o compõem. 

O corpo central fechado, guarnecido por colunas revestidas a lápis-lazúli.

Sintetizando a explicação detalhada disponível no portal da Fundação(1), aquele móvel insere-se na moda das miniatura dos célebres ‘Gabinetes de Curiosidades’, onde se coleccionavam e mostravam as preciosidades e os exotismos que a velha Europa descobria nos continentes recém-descobertos. 

Composto por materiais nobres e raros, como o ébano, a tartaruga, a prata, o ouro, o lápis-lazúli, além de prata, o contador possui múltiplos compartimentos para servir de guardador de joias, documentos secretos, dinheiro e outras raridades do proprietário. Na proveniência consta o nome da família judia mais poderosa da Europa – os Rothschild (desconhecendo-se o ramo). 

Datado do início do séc. XVIII, apresenta três corpos: (i) a base, onde se esconde um espelho e uma gaveta, para apoio (provável) à toilette, (ii) o corpo central fechado por duas portas com pinturas no interior, a resguardar oito gavetas separadas por uma coluna coríntia em lápis-lazúli; e (iii) o topo em formato de frontão com um relógio circular sustentado por uma figura mitológica (Atlas?)

A sumptuosidade da sua decoração barroca, repleta de figuras mitológicas, convida a colocá-lo desencostado das paredes, para poder ser apreciado de todos os lados: do interior ao exterior, da frente à parte traseira, igualmente revestida a materiais nobres, quer no folheado de madeira, quer nas incrustações em prata.  

Atrás, a decoração é mais simples, embora digna de nota.

Até no remate em baixo, este contador é excepcional, pois em vez dos habituais pés em enrolamento, estes são esferas achatadas, em madeira, com a parte inferior dourada e a superior revestida a prata dourada.

A nova peça em foco, neste início do ano, é a tela «VISTA DO COLISEU DE ROMA», atribuída a Giovanni Paolo Panini, do primeiro quartel do séc. XVIII. Em Panini (ou Pannini) é recorrente a junção de diferentes exemplares da Roma imperial, ocupando o Coliseu lugar cimeiro. Em 2007, na votação pública para reactualizar as Maravilhas do Mundo, o Coliseu de Roma integrou o número mágico das novas Sete Maravilhas legadas pela Antiguidade e mais votadas pelo público. O maior anfiteatro antigo foi escolhido, quer pela sofisticação arquitectónica, quer pela longevidade incrível da construção preservada em relativo bom estado, quer pela história dramática tingida de sangue inocente de gladiadores contratados à força e de cristãos atirados às feras por causa da sua fé, quer ainda pelo seu impacto social como principal espaço de entretenimento do grande Império, ou melhor, de inebriamento manipulativo do povo por imperadores cruéis, guiados pela máxima maquiavélica de anestesiar as populações com  «pan et circus». 

A tela mostra «uma vista da cidade de Roma. Junto ao Coliseu, numa paisagem campestre, diversos elementos com vestígios arqueológicos compõem um cenário bucólico. Várias mulheres trajando à maneira do século XVIII, lavam roupa, enquanto duas figuras vestidas à maneira clássica conversam, junto a um pequeno riacho e a uma fonte com tanque. O enquadramento cenográfico é complementado por capitel e pedaço de coluna caídos no chão e por duas esculturas de cariz clássico: uma feminina e outra de leão deitado. (…) A junção de elementos reais como o Coliseu, com vestígios arqueológicos e a cena pitoresca, colocam esta pintura nos chamados cappriccio ou vista idealizada, característica do trabalho de Panini.»
(in Coliseu de Roma - Destaque Janeiro 2022 - Casa-Museu Medeiros e Almeida).

Numa curta-metragem de divulgação histórica simplificada, desfiam-se as datas mais marcantes do conhecido anfiteatro da capital do Império, edificado em areia e uma massa argilosa, com revestimentos em pedra, mármore, ladrilho. Construído sobre o lago da casa de Nero, começou por se chamar ‘Domus Áurea’, mas rapidamente tomou o nome Colosseo (Coliseu) inspirado na estátua colossal do imperador ali colocada. Aos dois andares iniciais, adicionou-se um terceiro, que permitiu albergar 80 mil espectadores. Por baixo da arena, uma estrutura de madeira formava andares subterrâneos com aberturas e elevadores vários, que alimentavam uma animada actividade de palco. Na grande arena recriaram-se batalhas navais com água e embarcações reais, realizaram-se duelos mortíferos entre gladiadores ou contra feras vindas de África com cenários feéricos, executaram-se prisioneiros (mais tarde, cristãos pelo simples facto de serem cristãos) devorados por leopardos e leões famintos, sob o olhar de uma multidão embrutecida com aquelas cenas sanguinárias e aviltantes. Só a partir do séc. IV, foi proibida a morte de seres humanos no Coliseu, que também começou a cair em desuso. A partir de 1999, tornou-se símbolo da luta contra a pena de morte, emitindo uma luz sempre que há notícia de uma sentença nesse sentido.

           

Para completar a visita à Casa-Museu das redondezas da av. da Liberdade: na esquina da rua Alexandre Herculano com a rua do Vale de Pereiro nº 19, acabou de abrir o hotel com esplanada e restaurante, da cadeia francesa Mama Shelter (https://mamashelter.com/lisboa/eat-drink/), pertencente aos fundadores do Club Med. Pode ser uma alternativa à simpática cafetaria da própria Medeiros e Almeida ou ao restaurante da Cinemateca – o «39 DEGRAUS», que tem uma esplanada gira e ampla no terraço superior da casa (https://www.cinemateca.pt/Servicos/Restaurante.aspx). 

Tudo bons motivos para explorar esta zona tão apetitosa de Lisboa, sob o sol de Inverno e o céu turquesa da cidade, privilégios nossos ideais para estas incursões culturais & gastronómicas com muito arejo.

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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 (1) https://www.casa-museumedeirosealmeida.pt/pecas/contador-com-relogio-destaque-em-janeiro-2021/


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