08 junho 2022

Vai um gin do Peter’s ?

MÚSICA EM CAMPO DE PRISIONEIROS NAZI

Amanhã, dia 9 de junho (com entrada livre), às 18h, no Museu do Oriente, jovens solistas da Orquestra Metropolitana de Lisboa vão interpretar uma obra especial do compositor francês Olivier Messiaen (1908-1992) – «Quarteto para o Fim dos Tempos». O título apocalíptico ganha especial densidade por ter sido composta e estreada num campo de prisioneiros nazi na Polónia – o pouco conhecido Stalag 8 A da Silésia. Messiaen concebeu-a como homenagem ao Anjo do Apocalipse, que levanta a mão direita para o Céu bramando: «Eis que não haverá mais tempo», conforme narra a visão do Evangelista S. João (Ap.10, 5-6).


Em Paris, o compositor tem direito a nome de rua.

Messiaen era melómano, organista, compositor desde os 7 anos e ainda ornitólogo. Aos 18, começara a coleccionar chilreios de pássaros, de que recolheu milhares, nas suas digressões pelo mundo. Transpunha-os, frequentemente, para as suas músicas, conferindo-lhes uma sonoridade original e naturalista. 

Vista da casa de férias de Messiaen, sobre o lago Laffrey, onde compôs muitas das suas obras. 

Filho de um professor de literatura inglesa e de mãe-poeta, Olivier cresceu num meio artístico, rodeado do Belo e de uma fé vivida. Condensava a sua vida de artista e de profundo humanismo em poucas palavras: «A minha fé é a tensão mais dramática da minha vida. Sou crente, por isso canto palavras de Deus aos que não têm fé. Ofereço cantos de pássaros aos que vivem nas cidades e nunca os ouviram, faço ritmos para os que apenas conhecem as marchas militares e o jazz, e pinto cores para quem não as vê».

Escultura vanguardista de Messiaen feita pelo amigo escultor de origem polaca, Josef Pyrz, para o átrio exterior da Igreja de Nossa Senhora de Bruyères, em Neuvy-sur-Barangeon.

Quando rebentou a Segunda Guerra, alistou-se. Mas, logo em 1940, foi capturado pelos alemães e levado para o campo de prisioneiros no Leste, destinado a franceses, belgas e outros militares da Europa ocidental. Ali padeceu, durante 9 meses, fome, frio e trabalhos árduos. Valeu-lhe a amizade com um guarda prisional, que lhe facilitou papel e lápis para compor o seu Quarteto mais famoso. Começou por ter de o adaptar aos instrumentistas disponíveis, companheiros de cativeiro: o violinista Le Bulaire, o violoncelista Etienne Pasquier, o clarinetista Henri Akoka e ele num piano com teclas falhadas. Aliás, como todos os instrumentos estavam semi-delapidados, a pauta teve de se adaptar a um espectro sonoro mais reduzido. 

A estreia do Quarteto teve lugar a 15 de janeiro de 1941 e foi um acontecimento para os cerca de 5 mil prisioneiros e guardas prisionais que serviram de público. É comovente o sucesso que Messiaen lembra, apesar de a sonoridade não ser fácil, como assumiu quando explicou o alcance maior da obra: «é certo que não é agradável. Mas estou convencido que a alegria existe, que a existência do invisível se sobrepõe ao mundo visível, que a alegria suplanta o sofrimento, como a beleza suplanta o horror». E gravou no diário as seguintes linhas sobre aquele concerto insólito, que alguém comparou à audiência heterogénea que ouviu do Salvador o magnífico Sermão da Montanha: «It took place in Goetz in Silesia, in a dreadful cold Stalag buried in snow. We were 30,000 prisoners (French for the most part, with a few Poles and Belgians).  The four musicians played on broken instruments: Etienne Pasguier's cello had only three strings; the keys of my upright piano remained lowered when depressed...  It's on this piano, with my three fellow musicians, dressed in the oddest way — I myself wearing a bottle-green suit of a Czech soldier — completely tattered, and wooden clogs large enough for the blood to circulate despite the snow underfoot...that I played...before an audience of 5,000 people. The most diverse classes of society were mingled: farmers, factory workers, intellectuals, professional servicemen, doctors, priests. Never before have I been listened to with such attention and understanding.»

Em Março de 1941, foi libertado e instalou-se em Paris como professor do conservatório. Pelas suas aulas passaram grandes nomes da música do século XX como Pierre Boulez, Iannis Xenakis e George Benjamin, entre outros. 

Para quem não possa ir ao Museu do Oriente, aqui vai uma boa actuação dos oito andamentos(1) do «Quatuor pour la fin du temps», que ressoou pela primeira vez num pátio coberto por uma camada de neve impiedosa, mas onde chilreios de rouxinóis e de melros marcaram presença. Luminoso.

      

A força da obra confirma o que Messiaen declarou dela: «(é) um grande acto de fé». Naquele Inverno de 1941, foi igualmente um sinal de esperança incrível, que abriu uma brecha de vida num dos recantos mais obscuros e sofredores da história da humanidade.  Imperdível.

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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(1) Os 8 andamentos são: I. "Liturgie de cristal",  II. "Vocalise, pour l'Ange qui annonce la fin du temps", III. "Abîme des oiseaux", IV. "Intermède", V. "Louange à l'Éternité de Jésus", VI. "Danse de la fureur, pour les sept trompettes", VII. "Fouillis d'arcs-en-ciel, pour l'Ange qui annonce la fin du temps"e VIII. "Louange à l'Immortalité de Jésus".


1 comentário:

Anónimo disse...

Maria Zarco, queria cumprimentá-la pelo que agora escreveu.
Vós sois assim. Sabe bem encontrar a pessoa que nos tem faltado.
Cumprimenta,
ao

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