livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
europa-américa
1986
As melhores viagens são, por vezes, aquelas em que partimos ontem e regressamos muitos anos antes
Enviado por mão amiga com a seguinte legenda: Esta música e vídeo é uma homenagem à Ucrânia e ao seu povo. Slavia Ukraina!!!
Uma música de um tempo que foi o meu...
JdB
EVANGELHO - Mt 4,1-11
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
Naquele tempo,
Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto,
a fim de ser tentado pelo Demónio.
Jejuou quarenta dias e quarenta noites
e, por fim, teve fome.
O tentador aproximou se e disse lhe:
«Se és Filho de Deus,
diz a estas pedras que se transformem em pães».
Jesus respondeu lhe:
«Está escrito: 'Nem só de pão vive o homem,
mas de toda a palavra que sai da boca de Deus'».
Então o Demónio conduziu O à cidade santa,
levou O ao pináculo do templo e disse Lhe:
«Se és Filho de Deus, lança Te daqui abaixo, pois está escrito:
'Deus mandará aos seus Anjos que te recebam nas suas mãos,
para que não tropeces em alguma pedra'».
Respondeu lhe Jesus:
«Também está escrito: 'Não tentarás o Senhor teu Deus'».
De novo o Demónio O levou consigo a um monte muito alto,
mostrou Lhe todos os reinos do mundo e a sua glória,
e disse Lhe:
«Tudo isto Te darei,
se, prostrado, me adorares».
Respondeu lhe Jesus:
«Vai te, Satanás, porque esta escrito:
'Adoraras o Senhor teu Deus e só a Ele prestaras culto'».
Então o Demónio deixou O
e logo os Anjos se aproximaram e serviram Jesus.
- Tu sabes o que é um milagre, Jorge? Sabes o que é um milagre?
Evangelho: Mateus 6, 1-6.16-18
CARNAVAL
A vida é uma tremenda bebedeira.
Eu nunca tiro dela outra impressão.
Passo nas ruas, tenho a sensação
De um carnaval cheio de cor e poeira...
A cada hora tenho a dolorosa
Sensação, agradável todavia,
De ir aos encontrões atrás da alegria
Duma plebe farsante e copiosa...
Cada momento é um carnaval imenso
Em que ando misturado sem querer.
Se penso nisto maça-me viver
E eu, que amo a intensidade, acho isto intenso
De mais... Balbúrdia que entra pela cabeça
Dentro a quem quer parar um só momento
Em ver onde é que tem o pensamento
Antes que o ser e a lucidez lhe esqueça...
Automóveis, veículos, (...)
As ruas cheias, (...)
Fitas de cinema correndo sempre
E nunca tendo um sentido preciso.
Julgo-me bêbado, sinto-me confuso,
Cambaleio nas minhas sensações,
Sinto uma súbita falta de corrimões
No pleno dia da cidade (...)
Uma pândega esta existência toda...
Que embrulhada se mete por mim dentro
E sempre em mim desloca o crente centro
Do meu psiquismo, que anda sempre à roda...
E contudo eu estou como ninguém
De amoroso acordo com isto tudo...
Não encontro em mim, quando me estudo,
Diferença entre mim e isto que tem
Esta balbúrdia de carnaval tolo,
Esta mistura de europeu e zulu
Este batuque tremendo e chulo
E elegantemente em desconsolo...
Que tipos! Que agradáveis e antipáticos!
Como eu sou deles com um nojo a eles!
O mesmo tom europeu em nossas peles
E o mesmo ar conjuga-nos
Tenho às vezes o tédio de ser eu
Com esta forma de hoje e estas maneiras...
Gasto inúteis horas inteiras
A descobrir quem sou; e nunca deu
Resultado a pesquisa... Se há um plano
Que eu forme, na vida que talho para mim
Antes que eu chegue desse plano ao fim
Já estou como antes fora dele. É engano
A gente ter confiança em quem tem ser...
(...)
Olho p'ró tipo como eu que ai vem...
(...)
Como se veste (...) bem
Porque é uma necessidade que ele tem
Sem que ele tenha essa necessidade.
Ah, tudo isto é para dizer apenas
Que não estou bem na vida, e quero ir
Para um lugar mais sossegado, ouvir
Correr os rios e não ter mais penas.
Sim, estou farto do corpo e da alma
Que esse corpo contém, ou é, ou faz-se...
Cada momento é um corpo no que nasce...
Mas o que importa é que não tenho calma.
Não tenciono escrever outro poema
Tenciono só dizer que me aborreço.
A hora a hora minha vida meço
E acho-a um lamentável estratagema
De Deus para com o bocado de matéria
Que resolveu tomar para meu corpo...
Todo o conteúdo de mim é porco
E de uma chatíssima miséria.
Só é decente ser outra pessoa
Mas isso é porque a gente a vê por fora...
Qualquer coisa em mim parece agora
“Carnaval” Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.
- 7a.When Desire Rests
EVANGELHO - Mt 5, 38-48
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Ouvistes que foi dito aos antigos:
'Olho por olho e dente por dente'.
Eu, porém, digo-vos:
Não resistais ao homem mau.
Mas se alguém te bater na face direita,
oferece-lhe também a esquerda.
Se alguém quiser levar-te ao tribunal,
para ficar com a tua túnica,
deixa-lhe também o manto.
Se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha,
acompanha-o durante duas.
Dá a quem te pedir
e não voltes as costas a quem te pede emprestado.
Ouvistes que foi dito:
'Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo'.
Eu, porém, digo-vos:
Amai os vossos inimigos
e orai por aqueles que vos perseguem,
para serdes filhos do vosso Pai que está nos Céus;
pois Ele faz nascer o sol sobre bons e maus
e chover sobre justos e injustos.
Se amardes aqueles que vos amam, que recompensa tereis?
Não fazem a mesma coisa os publicanos?
E se saudardes apenas os vossos irmãos,
que fazeis de extraordinário?
Não o fazem também os pagãos?
Portanto, sede perfeitos,
como o vosso Pai celeste é perfeito».
COMO A MEMÓRIA NOS REVELA
Dependendo dos colégios por onde uns e outros andaram, assim terão sido mais ou menos frequentes os pedidos de redacções, ora com assunto pré-definido, ora de tema livre. Nos pré-fixados repetiam-se invariavelmente “as férias”, “o Natal”, o fim-de-semana, cada estação do ano, a escola, os amigos, num déjà vue cansativo, em que era custoso não replicarmos o que tínhamos escrito uns meses atrás. Por vezes, surgia um assunto mais inspirador, que nos ajudava a sair do marasmo comum, como experimentei com uma professora do liceu, mais pop, que recolhia ideias nos jornais, a partir de acontecimentos recentes ou de debates na ordem do dia. Essa aproximação a uma realidade mais colorida instigava-nos a investigar a matéria, a estruturar ideias e a esboçar um ponto de vista, conforme nos era dado ver e conhecer do dito assunto.
Nesse esforço de escrita percebiam-se bem os temas que inspiravam uns ou outros, revelando um pouco da fase em que estávamos, ora tocados por experiências pessoais, ora estimulados por uma matéria política candente, ora fixados no hobby preferido, ora sensíveis a gestos contagiantes de outros. Tinha algo de pedagógico participar nesse exercício, onde se observavam múltiplas evoluções ou simplesmente percursos ziguezagueantes típicos do crescimento. O teste do algodão vinha, quase sempre, nas incursões retrospectivas, fossem narradas com maior preocupação com o vivido ou viessem mescladas com as afectividades individuais, únicas. Percebia-se quanto a memória se guiava (e guia) pelo caminho do coração. Por isso é deliciosa e diz muito deste aluno a redacção onde traça a professora da primária com tamanha estatura e gratidão, mesmo supondo que a protagonista merece ser assim lembrada. Mas quantos dos seus alunos lhe reconhecem este contributo para o seu desenvolvimento?
«A MINHA PROFESSORA
Chega setembro e voltámos à escola. Ou, mais estrondoso ainda, ingressámos na escola pela primeira vez. Com que palavras se evocam essas figuras que, nos anos primeiros da nossa formação, nos ensinaram não só a ler e a contar, mas antecipadamente nos revelaram o que viria a ser impacto disso na nossa vida. São figuras matriciais, protagonistas pacientes que não se assustaram com a nossa turbulência e ignorância, que ativaram em nós o espanto, a inteligência e a dedicação, e fizeram de nós aquilo que depois seremos até ao fim: aprendizes.
“SÃO (…) PROTAGONISTAS PACIENTES QUE NÃO SE ASSUSTARAM COM A NOSSA TURBULÊNCIA E IGNORÂNCIA, QUE ATIVARAM EM NÓS O ESPANTO, A INTELIGÊNCIA E A DEDICAÇÃO”
Há dias dei comigo a pensar numa das minhas professoras do ensino primário. Conheci-a no último ano do primeiro ciclo do ensino básico, a então quarta classe. Havia feito os anos iniciais de escolaridade em Angola e chegava à Madeira, onde para mim tudo era novo e, certamente, também difícil, penso eu agora. A escola ajudou-me a refazer de dores de que eu não era consciente. Lembro-me de três episódios. O primeiro foi uma aula fora da escola, por meados de outubro: a professora levou-nos ao caminho do cais, serpenteado de grandes árvores, para que recolhêssemos folhas de outono. Eu até aí não sabia o que era o outono, habituado às duas estações africanas. Entreguei-me, por isso, àquela atividade um bocado às cegas, valorizando erroneamente alterações mínimas nas folhas, coisas que o verão produzira nelas. Enchi as mãos de folhas que me fizeram ouvir aquela que é a primeira frase que recordo da professora: “Essas não são ainda as folhas do outono.” A verdade é que, não sei bem porquê, recebi aquela correção sem descorçoar. Deve ter sido feita no tom certo. Voltei àquele caminho sozinho e com mais atenção. Encontrar o outono nas folhas tornara-se uma tarefa pessoal importantíssima e depressa aquelas folhas amareladas e vermelhas, como se fixassem em si uma labareda, vieram a ser a minha primeira coleção, para desconcerto dos meus irmãos e primos, que seguiam com ironia e desespero aquele meu súbito arrebatamento de caçador de inutilidades. Porém, alguma utilidade tiveram aquelas horas perdidas, pois, quando a professora nos pediu uma composição escrita sobre o outono, tinha alguma coisa para dizer. Isso, porém, não diminuiu a surpresa que para mim foi o modo como a professora festejaria a minha composição, colocando-a num quadro de cartolina, dependurado numa das paredes da sala. Experimentei contentamento e vergonha, pois na infância tudo nos custa mais do que se mostra, até a alegria. Este foi o segundo episódio. O terceiro foi dramático e não teve nada de escolar, mas atesta como os professores humanizam a escola, evitando que ela se torne uma máquina de processos e de técnicas. O barco onde trabalhava o meu pai não tinha entrado no porto, falava-se à boca pequena de um possível naufrágio e que os tripulantes estariam dispersos, e, quem sabe, mortos. A minha mãe sacudia como podia a nossa angústia e não tinha dúvidas de que o melhor seria não faltarmos à escola. Assim foi. Recordo que o nó que tinha na garganta estrangulava o meu corpo e que choramingava. A professora falou-me com desembaraço, como se fala aos crescidos nesses momentos, mas deu depois uma parte da aula sentada a meu lado.
Sei muito pouco da vida desta mulher maravilhosa que na minha cabeça ficou sempre como “a minha professora”. E o nosso encontro mais recente, teve o seu quê de cómico. Ela assistiu a uma sessão em que eu falava e no final veio cumprimentar-me. Senti uma emoção que não fui a tempo de esconder. E atrapalhado perguntei se ainda dava aulas. Ela deu uma gargalhada e, nesse momento, os nossos olhos com doçura se cruzaram. Só então me dei conta de como e porquê, dentro de nós, fantasiamos que o tempo não passa.»
É significativo este artigo ter sido publicado no rescaldo do regresso às aulas, após 6 meses de ausência para a maioria dos miúdos, devido ao confinamento decretado em Março de 2020, a que se juntaram os 2 meses de férias. Meio ano longe da escola é muito tempo na vida de quem tem pouca idade! Partilhar uma lembrança tão positiva sobre quem mais nos pode ajudar na escola foi mesmo certeiro, ainda que o texto possa ter demorado a chegar aos mais novos.
O final oferece uma chave óptima sobre as vantagens do olhar capaz de repassar a vida sob um ângulo positivo, não por embelezamentos artificiais, mas pela capacidade de guardar o que vale a pena! É um apelo ao dom do discernimento começando por encarar a vida como mistério. Não se confunde com um branqueamento do passado, mesmo que por motivos de higiene psicológica (tentação compreensível). Não é fantasia que algum tempo não passa, antes sustenta a trama da nossa vida, graças à memória! Isto é notório nas pessoas mais velhas, mais desmemoriadas, mas ainda com acesso ao passado distante. É refrescante ouvir e ler memórias tão agradecidas ao passado. Sim, também somos feitos do património de vida acumulada, que a memória preserva como as flores mais importantes do jardim, regando esses segredos antigos com a água e os truques vitamínicos que encontrar (ou não) no nosso coração, ora revitalizantes, ora amargosos e sombrios; ora livres e respeitadores, ora julgadores e assertivos…
De certo modo, viver é relativamente fácil. O desafio está em saber viver e saber recordar, segundo o sábio conselho: ficai com o que é bom.
Sabe, Jorge, o erro não é uma palavra com quatro letras apenas, como você o concebe. E não é, tão pouco, uma palavra de utilização única, como se fosse um artigo descartável.
E A MORTE PERDERÁ O SEU DOMÍNIO
Para o A., no Céu de onde olha para nós.
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Passavam cinco minutos das nove da manhã de ontem quando recebi a mensagem esperada: uma prima minha tinha morrido. Fui vê-la no sábado e não evidenciou sinal algum de que se tinha apercebido da minha presença. Talvez fruto da doença ou dos cuidados paliativos, estava já no mundo dela, de sossego e espera. Não sei se sentiu as minhas festas; não sei se ouviu a graça que dizíamos um ao outro sempre que falávamos ao telefone: olhe A., olhe agora, olhe a casa da... O facto de não ter evidenciado que sentia ou ouvia não quer dizer que não sentisse ou ouvisse. Talvez sim ou talvez não, é pouco importante.
Há pouco mais de dois anos, no decurso da venda de uma quinta de família, escrevi o parágrafo abaixo:
Por circunstâncias próprias do meu crescimento e da minha vida familiar / social, fui consolidando a ideia de que a família não era o sangue. Podíamos sentir-nos mais familiares de uma vizinha de quem sempre fomos próximos do que de um primo direito a quem nada nos ligava. Não obstante, fui sendo educado - por via de uma capilaridade, não de uma instrução - que a família era o sangue; ou que era muito o sangue. A idade, a experiência ou uma certa sorte, permitiu uma convicção: família é tudo. Ou seja, o não sangue, mas o sangue também. Por vezes o que nos define como família não é, nem a proximidade, nem a semelhança de idades, nem uma convivência próxima, mas uma certa ideia de património imaterial que nos é comum por via de um nome de família.
Esta minha prima era da minha família em todos os aspectos: era do meu sangue e era do meu afecto. Tínhamos um nome em comum e tínhamos um património em comum: histórias, acima de tudo, porque os imóveis quase não existiam. Talvez a família se torne mais importante à medida que envelhecemos e realizamos que temos mais passado do que futuro. Conversar com ela - e com os irmãos, únicos primos direitos deste lado - era percorrer um território conhecido, familiar. Era, de certa forma, um regresso a casa. Saber que foi para o Céu é perceber, no meu pequenino egoísmo, que a minha casa afectiva está mais pequena, irremediavelmente mais pequena. Na última meia dúzia de anos foi-se esvaziando com uma rapidez injusta, porque levou gente a quem faltavam muitos anos para cumprir a estatística da esperança de vida.
Tive um desgosto grande com a morte desta minha prima. Um desgosto que não se compara ao dos filhos, netos e irmãos mas, não obstante, um desgosto. Porque era minha amiga, porque era muito boa pessoa - e porque era da minha família do coração. E porque, apesar de tudo o que a vida nos ensina, ainda nos custa aceitar que nunca mais veremos alguém de quem gostamos muito. Perde-se uma fonte de informação, uma fonte de amizade, uma presença regular na mesa onde celebrávamos datas específicas. O que se ganha, porque também se ganha, ainda que dolorosamente? A certeza da efemeridade das coisas e das pessoas, a evidência de que aquilo que separa a vida da morte é um fio de cabelo; entre estar e deixar de estar há um pedaço de nada.
Resta-nos lutar pelos que nos são mais próximos, para que permaneçam próximos e para que possamos usufruir do futuro desconhecido que temos até que vislumbremos a curva da estrada. Se estas mortes prematuras não nos derem discernimento, então tudo é vão.
JdB
Alfredo tinha 67 anos e uma melena loira rebelde. Era um homem bem constituído, fruto de uma genética favorável e de um cuidado militante com a alimentação e o desporto. Apesar da idade, via invulgarmente bem, pelo que não usava óculos; o cabelo, bem cortado, era ainda farto, e vestia-se de forma clássica mas moderna. Na importante arte da conversa era fluido, falando de temas variados com uma segurança que lhe advinha da curiosidade, não da sapiência. Se sabia, partilhava; se não sabia, perguntava. Tinha uma noção muito certa da duração das histórias: uma graça conta-se em três pinceladas, porque o excesso de pormenor não acrescenta valor, muito pelo contrário. Era uma boa companhia, aderindo a programas díspares sem qualquer preconceito: ia se o divertia ou se lhe espicaçava o interesse, independentemente de ser num palácio bem conservado ou numa agremiação desportiva com uma certa decadência.
Foi numa festa de cariz popular que se cruzou com a Paula. Encostado a um pilar com um copo de cerveja na mão, observava as pessoas a dançar, naquela espécie de exorcismo que parece caracterizar a dança de hoje em dia. Alfredo tinha da dança uma visão diferente: era, acima de tudo, um ritual de acasalamento ou uma manifestação de afecto, embora percebesse aquela agitação frenética de pessoas que querem expulsar demónios que assumem a figura de stress do trânsito, de um chefe intolerável, de um ordenado que não chega ao fim do mês ou de uma conjugalidade que já conheceu melhores dias. As pessoas dançavam - mas já não dançavam com ninguém.
Paula aproximou-se e disse-lhe uma graça: se pode usufruir da agitação dos Duran Duran, porque prefere o imobilismo de uma coluna? Ele sorriu e atirou-se com destreza modesta à pista. Nos minutos seguintes conversaram (alto, para vencer o som ambiente) e dançaram, falaram de trivialidades e dos sítios que tinham sido locais um do outro numa juventude mais distante. Embora Paula e Alfredo não se conhecessem, identificavam os sítios, os rituais, as expressões. E isso levava-os a rir e, pelo menos do lado de Alfredo, a perspectivar uma noite interessante que não sabia onde podia terminar. Alfredo sentia-se novo, interessante e interessado, disponível para uma aventura, por mais inocente que fosse. Não precisava de óculos para ver as feições interessantes de Paula a agitar-se ao som de uma música mais frenética, e porventura mais ruidosa do que ele gostaria. Em bom rigor, tudo em Alfredo estava bem conservado - apenas a audição o traía. Talvez traição não fosse a palavra certa, porque a surdez chegava com a idade, não à socapa.
Paula aproximou-se e disse-lhe: gostaria de beber um copo em minha casa no fim da festa? Alfredo tinha 68 anos e uma melena loira rebelde. Apesar dos olhos de águia tinha uns ouvidos de mouco e não compreendeu a pergunta, pelo que respondeu: não percebi... Para surpresa dele viu Paula corar brevemente e sentiu o sorriso dela esmorecer de timidez. Não percebi... Paula disfarçou, agitou o corpo com gosto e, chegando-se a ele numa distância toda cheia de pudor e vergonha, ripostou: perguntei se gostava dos Roxy Music...
JdB
EVANGELHO - Mt 5, 13-16
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Vós sois o sal da terra.
Mas se ele perder a força, com que há-de salgar-se?
Não serve para nada,
senão para ser lançado fora e pisado pelos homens.
Vós sois a luz do mundo.
Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte;
nem se acende uma lâmpada para a colocar debaixo do alqueire,
mas sobre o candelabro,
onde brilha para todos os que estão em casa.
Assim deve brilhar a vossa luz diante dos homens,
para que, vendo as vossas boas obras,
glorifiquem o vosso Pai que está nos Céus».
MONSTROS OU HERÓIS - O QUE TRANSFORMA CIDADÃOS COMUNS?
Com a autoridade de ser judeu e de ter sido o Procurador Chefe no Tribunal de Nuremberga, onde altos responsáveis nazis foram julgados, Benjamin Ferencz não hesitou em identificar o fenómeno que, a seu ver, mais transfigura os seres humanos, podendo levá-los às maiores bestialidades: a guerra. Naturalmente, que um período especialmente ilustrativo da horrenda desfiguração humana foi a Segunda Guerra Mundial. «Law, not war» era uma das recomendações deste advogado-escritor-pensador lúcido e bondoso, que teve a coragem de não diabolizar nenhum povo nem nenhuma geração, percebendo quanto a maldade e a bondade são opções ao alcance de cada ser humano. Daí a abordagem invulgarmente isenta e discernida com que reflecte sobre as causas do Holocausto. Entre os muitos testemunhos deixados (https://benferencz.org/), segue o da entrevista dada à CBS, aos 97 anos de idade:
In an interview with the last living Nuremberg prosecutor, 97-year-old Ben Ferencz (BF), Sixty Minutes’ Leslie Stahl (LS) asked him a question that gets to the heart of what is so unfathomable about the Holocaust. Ferencz was the chief prosecutor for the U.S. Army at the Einsatzgruppen trial, one of the 12 war crimes trials held in Nuremberg, Germany, after the end of World War II. He helped prove the guilt of a group of German SS officers accused of participating in mobile death squads in which over a million men, women and children were shot dead in their own towns and villages across Eastern Europe.
Ferencz em 2017, fotografado por Robin Utrech, da AFP. |
Exemplos de bestialidades na Guerra de 1939-45 são incontáveis. Basta lembrar as atrocidades cometidas por muitos (quase todos os) nazis e combatentes japoneses, mas igualmente por alguns aliados, quando deixaram um rasto de barbárie escusada. Foi o caso do avanço do Exército Vermelho sobre Berlim, saqueando, violando e matando civis indefesos e inocentes, no seu percurso até ao coração do Reich.
Ferencz não disse, mas a guerra também produz o oposto, quando instiga bravura e heroísmo em graus épicos. Poderão ser casos mais raros e com certeza mais discretos, quase sempre a fluir no anonimato. Mas nem por isso merecem menos destaque do que a perversão à solta. Foi o caso de uma família polaca pobre, do povoado de Markowa – os Ulm, com 7 filhos (o mais novo ainda na barriga da mãe) – assassinada pelas SS, em Março de 1944, por se ter atrevido a dar guarida a uma família judia, apesar de estar ciente do risco que corria e das dificuldades financeiras que tinham. A generosidade dos Ulm, até ao martírio, foi reconhecida e homenageada pelo Vaticano como acto heróico de autêntica santidade. Por isso, numa decisão histórica, toda a família, incluindo o bebé por nascer (inédito!), foi beatificada. A nota publicada pelo Dicastério para a Causa dos Santos, em Dezembro de 2022, indica o motivo (na tradução disponível, em inglês): «Venerable Servants of God Jozef and Wiktoria Ulm and their seven children († March 24, 1944). A married lay couple with seven children, murdered out of hatred of their faith on March 24, 1944, who, although aware of the risks and financial difficulties, hid a Jewish family in their house for a year and a half. When discovered, they were all murdered, including the child in Victoria’s womb.»
Quatro das crianças Ulm. |
Os pais Jozef e Wiktoria e os seus 7 filhos: Stanisława de 7 anos, Barbara de 6, Władysław de 5, Franciszek de 4, Antoni de 2, Maria de 1 e o bebé ainda na barriga da mãe grávida de 8 meses. |
Continuamos a acompanhar, em directo, uma guerra selvática em solo europeu, causada por uma invasão ilegal, injusta e incrivelmente violenta, que permanece indiferente à mortandade do povo ucraniano, mas também da juventude russa, para além da devastação material e do deslocamento forçado de milhões de ucranianos. Quando este pesadelo terminar, haverá mais distanciamento para se analisarem as atrocidades cometidas, a par dos gestos heróicos que coabitaram com a maldade mais grotesca.
Possa a guerra na e contra a Ucrânia – felizmente no foco dos media – servir de lembrete ao horror hoje perpetrado noutras geografias mais esquecidas e remotas, como na Síria, na Etiópia, em Cabo Delgado no Norte de Moçambique, na Nigéria, etc. No fundo, dói que continue a ser ignorado o alerta lapidar e sábio de Ferencz sobre a distorção humana (talvez para a maioria) que a guerra favorece.