ÓPERA NA PRISÃO E NA JMJ
A explosão de eventos que animam a agenda do milhão e meio de gente nova (e menos nova) de todos os cantos do mundo, que escolheram reunir-se em Lisboa para serem os peregrinos da JMJ de 2023, está muito bem explicada em vários sites: o oficial (https://www.lisboa2023.org/pt/programa-festival-da-juventude), no Observador para a agenda das Jornadas (https://observador.pt/especiais/seis-dias-centenas-de-eventos-a-agenda-completa-da-jmj/) e para os acessos (https://observador.pt/especiais/um-guia-para-circular-durante-a-jmj/), da CML com a localização dos sítios onde há eventos (https://www.agendalx.pt/events/event/festival-mundial-da-juventude/).
Muitos grupos, sobretudo de portugueses, honrando a responsabilidade e a honra de serem o país-anfitrião da JMJ – o maior evento mundial de jovens – contaram com o apoio generoso dos patrocinadores do costume (entre empresas, particulares, fundações, CML e alguns co-financiamentos do Estado). Mas também viveram surpresas espantosas. Felizmente, porque ajudam a dar o toque final que garante a qualidade do ‘fermento’, ou melhor, da grandeza humana empenhada em ir ampliando o horizonte, que constitui um traço distintivo dos acontecimentos com Cristo na mira.
Claro que a Gulbenkian entrou como um dos parceiros esperados, sempre fiel a responder às chamadas para a cultura e a solidariedade. A novidade foi o parceiro improvável que trouxe para o mundo da cultura, para dar corpo a uma iniciativa musical: uma prisão remota de Leiria. A parceria começou em 2014 e vai ter um ponto alto no concerto de hoje, 2 de Agosto, às 15h30, no Auditório 2 da Fundação. Intitula-se «Mozart On, Quando a Reclusão Inspira» e dá palco a jovens reclusos para interpretarem árias da ópera «D.Giovanni» (https://gulbenkian.pt/agenda/opera-na-prisao/). Ao concerto, de 1 hora, segue-se uma conversa com o público sobre ‘Ópera na Prisão’, que incentiva o canto lírico, a composição e o teatro musical entre os presos. A longa preparação e montagem desta performance para a JMJ já valeu como hobby luminoso e exigente, que visa aliviar a dureza do tempo passado atrás das grades. Só por isso, este audacioso projecto musical está a cumprir-se por inteiro!
Foto: © Joaquim Dâmaso |
Teatros, concertos, espectáculos de dança, exposições, conferências e mais um sem-fim de propostas compõem a programação desta JMJ. Mas pouco ou nada se compara à tranquilidade alegre e fraterna dos peregrinos que pululam pelas ruas de Lisboa, a cantarolar em fila indiana, com a bandeira do seu país agitada com garbo por um do grupo. É tocante a fantástica capacidade de entendimento com os outros jovens que se amontoam no passeio da frente, em acenos e mímica empática, pois misteriosamente, nada os separa, nem a língua, nem as bandeiras, nem as diferenças nas cores e nos slogans das T-shirts. Um verdadeiro Pentecostes para este tempo, escancarado à nossa vista, a estender-se por uma semana a fio. Talvez não seja menos impressionante do que o primeiro, há dois mil anos...
Num pormenor muito português, a JMJ de Lisboa incluem a Imagem original da Capelinha das Aparições, esculpida em 1920, que chegou ao Terreiro do Paço na Segunda-feira à tarde. Depois de ter percorrido a primeira parte do caminho a pé, acompanhada pelos Escuteiros, em Vila Franca de Xira, embarcou num veleiro devidamente engalanado para acostar no Cais da Marinha, perto do antigo pórtico das entradas solenes na maravilhosa Lisboa, que privilegiava o acesso por mar, à semelhança das demais grandes metrópoles das potências marítimas (Londres, Istanbul, Bombaim, Nova Iorque, etc.).
Esperava a Imagem um pequeno ajuntamento de fiéis, pois a notícia da sua vinda correu à boca pequena, talvez para se evitarem aglomerados excessivos, difíceis de acomodar num pontão de pedra estreito. Estiveram alguns estrangeiros felizardos, que tinham sabido da notícia, acotovelando-se com lisboetas e os inúmeros velejadores que escoltaram a Senhora de Fátima na travessia pelo Tejo. Mal assomou no horizonte, a multidão irrompeu em ‘Vivas’ e em acenos com lenços brancos. Depois, entoaram-se os cânticos tradicionais da Cova de Iria, com vozes roucas entrecortadas pela comoção e desfiaram-se Avé-Marias semi-segredadas, vindas do fundo do coração. Foi impressionante confirmar a força desproporcionada da pequena imagem, sumamente modesta e magrinha, meia perdida no meio de um andor pujante de flores brancas. O segredo estará no facto de a Senhora vir sempre como Mãe, pelo que a multidão alapa-se-lhe à maneira dos filhos, sem equívocos. Novamente, vivemos a magia enriquecedora da diversidade: uns de fato e blazer ou vestidos e kaftans, vindos do trabalho, outros de batina ou as Irmãs da Caridade no seu sari branco e azul, outros ainda em fato-de-banho, q.b. tatuados e até descalços, porque vinham nos barcos do cortejo náutico saído de Vila Franca. Um pluralismo maravilhoso, que se harmoniza tranquilamente sob o olhar da Mãe, com lugar para todos.
Campinos da Casa Palha em guarda de honra à Imagem de Nossa Senhora. |
Aproximação ao Cais da Marinha e pequeno percurso no lado nascente do Terreiro do Paço |
Ali perto, na colunata poente do Terreiro do Paço, onde se situa uma das entradas para o Páteo da Galé, decorria a inauguração da exposição sobre Fernando Pessoa, que tomou por título o pedido mais radical do poeta: «QUERENDO, QUERO O INFINITO / IN LONGING, I LONG FOR THE INFINITE». Esta mostra, patente até 4 de Agosto, replica parcialmente a exposição que esteve no «Meeting» em Itália (Rimini), no Verão do ano passado e foi tema de uma sequência de “gins”, começada a 31 de Agosto de 2022. Foi concebida e montada por um grupo de amigos universitários, procurando interpelar-nos a partir da imensidão de perguntas subjacentes à angústia do grande poeta do século XX: «FACED WITH SO MUCH ANGUISH AND CHAOS, WHAT ANSWER CAN WE GIVE? HOW ARE WE TO FACE THE WORLD?». Novidade na mostra de Lisboa é o conjunto de blocos magníficos de cortiça porosa numa mescla aconchegante de castanhos (oferta da Corticeira Amorim), assim como a estátua inspiradora de Fernando Pessoa, em pose pensativa, composta por uma trama de rede metálica, que concilia a forma tridimensional com imensa luminosidade e boa dose de transparência, metáforas perfeitas de um poeta que se desdobrou em mil personagens para tentar responder à sede de infinito. Apenas um par de citações na exposição, que ganha muito em ser descoberta com a ajuda de um dos universitários disponíveis para acompanhar quem queira:
EXCERTOS LAPIDARES NO PÁTEO DA GALÉ:
- «Sinto-me nascido para a cada momento / Para a eterna novidade do Mundo;
- «O abismo é o muro que tenho / Ser eu não tem um tamanho.»
- «Quem tem alma não tem calma»
- «E eu sou um mar de sargaço / Um mar onde bóiam lento / Fragmentos de um mar de além… / Vontades ou pensamentos? / Não o sei e sei-o bem.»
- «Os homens tendem a fazer dos sonhos coisas, das coisas falsas coisas verdadeiras e a encarar a realidade como um nada.» [sublinhado no original]
- «O mundo explode, mas o coração do homem já explodiu primeiro» [escrito nas vésperas do eclodir da Primeira Guerra Mundial]
- «Nasci num tempo em que a maioria dos jovens havia perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido – sem saber porquê.»
Num auditório cheio, intervieram personalidades entusiastas de Pessoa, como o treinador de futebol Fernando Santos e o Professor Henrique Leitão |
Em destaque, grafitada na cortiça está uma das expressões preferidas de Pessoa: «I KNOW NOT WHAT TOMORROW WILL BRING» [na imagem disponível, entrecortada] |
Pouco importa tentar avaliar ou sequer antecipar o alcance desta JMJ, mesmo que venha a ser imenso, como é provável. O valor da Jornada medir-se-á pessoa-a-pessoa; contará na medida em que contar para cada um, sejam muitos ou poucos. Porque cada indivíduo vale por si. Estar tão por perto dos acontecimentos é o maior privilégio, pelo que participar neles é a grande escolha.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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