Ontem, por volta das oito da manhã, paredão do Estoril.
Duas senhoras, por volta dos sessenta anos, pouco mais, equipadas com fato de treino vermelho, abordam um cavalheiro que, de auscultadores nos ouvidos, vem em sentido contrário. Pelo ar dele - enfim, podia ser da hora matutina - percebe-se que não se conhecem. Ele pára, esboça um sorriso matutino e esforçado, e cede o equipamento a uma delas. Esta põe-no na cabeça e, passados dois segundos, agita-se mansamente ao som de uma música cujo ritmo só posso imaginar. Três segundos depois a devolução ao legítimo dono e a continuação da passeata.
Esta cena oferece vários ângulos de observação. Em primeiro lugar, o à-vontade com que alguém aborda outro alguém no meio da rua para lhe solicitar algo. Não falamos de esmola, de um isqueiro, de um telefonema numa emergência ou da indagação das horas. Não. As senhoras invejaram os auscultadores de um transeunte (destes auscultadores à antiga, que cobrem a totalidade dos ouvidos) e decidiram avaliá-lo. Não lhes ocorreu que o legítimo dono pudesse não achar graça a ser parado, a ser interrompido, a engolir uma repugnância de ver os seus auscultadores colocados sobre os ouvidos de alguém desconhecido. Conheço boa gente para quem isso constituiria um certo nojo. Por outro lado, ninguém nos diz que o cavalheiro se sentisse à vontade em partilhar o que estava a ouvir com pessoas estranhas ao serviço dele. Para algumas pessoas, a música de um ipod pode inscrever-se numa certa dimensão de privacidade.
Quando ando no paredão gosto de olhar para as pessoas e imaginar-lhes histórias. Em particular, quando têm auriculares ou auscultadores, gosto de lhes imaginar a música que ouvem, e encontrar uma certa coerência entre ocupação imaginada e música imaginada. Por exemplo, durante muito tempo cruzei-me com um casal dos seus sessenta e poucos anos. Ele tinha cara de ter sido maquinista da CP; ela, talvez operária numa fábrica de malhas. O que ouviria ele, que andava sempre de auricular nos ouvidos? Por outro lado, o que é ter cara de?
(A esse propósito, lembro-me de uma história que me contaram há mais de 30 anos: fulano, jovem, à mesa da refeição em casa dos pais referiu-se a alguém como tendo "cara de criada". Ora, a empregada da casa, vigilante ao canto da sala de jantar para retirar atempadamente os pratos da sopa, que o empadão de batata ficava frio, questionou: "oh menino, e as criadas têm uma cara especial?").
O que é ter cara de? E o que nos diz isso da música que essas pessoas ouvem? O que ouve alguém que tem cara de maquinista reformado da CP? Tony Carreira? O pequeno Saúl? Ou pode ir surpreendentemente a um Freddy Mercury ou, ainda mais surpreendentemente, a um Mozart? Numa camada mais jovem, a imaginação estará mais próxima da realidade: ser filho/a de um maquinista reformado da CP ou de um gigante da nossa indústria não constitui diferença assinalável: todos/as têm um equipamento electrónico onde, com poucas excepções (talvez a comunidade africana) ouvem o mesmo género de música. Mas sobe-se uma ou duas gerações e o acesso à música, com excepção da telefonia, não estava generalizado.
Há 40 anos, o maquinista da CP ouviria o que a telefonia lhe oferecesse; hoje reformado, ouve o quê? E se afinal não é maquinista reformado, apesar de ter cara disso, mas um engenheiro informático ou um industrial do tijolo de Vieira de Leiria?
JdB
* publicado originalmente a 4 de Fevereiro de 2016
1 comentário:
Então Simão?
Oh pai, tem cara de bolacha.
Mas há bolachas tão boas!
Abr
fq
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