24 abril 2024

Vai um gin do Peter’s ?

 MAORIS E ZECA AFONSO 

Uma instalação aerodinâmica da autoria de um colectivo de artistas maoris arrebatou o Leão de Ouro da Bienal de Veneza deste ano. O grupo nasceu em 2012, especializando-se em enobrecer materiais pobres e vulgares transpondo-os para o universo artístico. O objectivo (dizem) é elevar o espaço visual de quantos trabalham em fábricas, indústrias pesadas, oficinas, convertendo as matérias mais prosaicas em obras de arte. O resultado do entrançado de fios de lã, na forma aconchegante e protectora de uma casa impressiona pela beleza tranquila, sustentada por um jogo de luz e sombra fabuloso. O título «Takapau» remete para a indústria de moagem neo-zelandesa situada nas planícies homónimas.

Mataaho Collective, constituído pelas 4 neo-zelandesas de ascendência maori, que gostam de trabalhar a:
 ‘8 mãos, inspiradas por 4 cabeças’ (da esq. para a direita): Terri Te Tau, Bridget Reweti, Sarah Hudson e Erena Arapere-Baker.



Na véspera da comemoração dos 50 anos do 25 de Abril, muitas histórias pessoais se cruzam nesta data marcante, lembrado por quantos o viveram com idade mínima para guardar memórias de um dia sem ir à escola, com a televisão suspensa até meio da tarde, uma vozearia confusa nas diferentes frequências de rádio, os telefonemas dos pais a trocar impressões em surdina para perceber como tudo ia evoluindo, amigos (com idades entre os 10 e os 13) que um pai historiador fez questão de levar ao Largo do Carmo para lhes mostrar um momento de viragem da história nacional, etc.  

Sophia de Mello Breyner e o seu poema de 27 de Abril de 1974: «REVOLUÇÃO: Como casa limpa / Como chão varrido / Como porta aberta / Como puro início / Como tempo novo / Sem mancha nem vício / Como a voz do mar / Interior de um povo / Como página em branco / Onde o poema emerge / Como arquitectura / Do homem que ergue / Sua habitação»  


Depois, sucederam-se as celebrações dos que confiavam na liberdade, enquanto as alas comunista, trotskista e de esquerda radical variada cerrava fileiras para arrastar o rumo dos acontecimentos para outra direção, sonhando com uma ditadura pró-soviética. Segundo a private joke sussurrada entre comunistas (e contado por uma ex-comunista) sobre os efeitos intencionalmente devastadores do bolchevismo para tomar o poder de assalto, a primeira e maior vítima é sempre a verdade. Assim, tudo deve ser dito ao contrário para manobrar e baralhar as populações, além do ataque cerrado a todas as estruturas do regime a depor. Quanto mais caos melhor, como se infere da tal graça soprada entre camaradas: «os comunistas lutam tanto, mas tanto, pela paz no mundo, que não deixam pedra sobre pedra»!  

Quantas noitadas de vaticínios sobre o futuro ouvimos aos adultos mais próximos. Quanta tensão, quanto combate corajoso nos bastidores, até se chegar a um patamar mais sólido de liberdade real. Muito ficámos a dever a um punhado de heróis, que arriscou a vida para implantar a democracia, a liberdade em Portugal. As entrevistas de Maria João Avillez documentam com limpidez esses claros-escuros pós-revolucionários (no livro de 1994 agora reeditado «Do Fundo da Revolução» e no podcast do Observador).  

Por junto – ao jeito dos amigos adolescentes conduzidos ao local mais famoso da Revolução, imortalizado em pintura por Maria Helena Vieira da Silva (gin de 28.ABR.2021) – sinto-me privilegiada por também ter testemunhado em vida (embora com pouca idade), o dia inaugural de um novo tempo. Confirmei, anos depois, quanto aquela quinta-feira primaveril marcara a História do país. Mais crescida, senti-me agradecida aos verdadeiros democratas, que abriram caminho a custo, durante o PREC, aceitando que o processo seria demorado, difícil, com altos e baixos e até algumas regressões. Mesmo no mais recente índice de democraticidade publicado pelo The Economist, Portugal ocupa um lugar próximo de países com democracias débeis. Percebe-se que ainda há um caminho a percorrer para o Estado assegurar as funções de soberania, aceitar ser escrutinado no exercício do poder, garantir a qualidade da Justiça para combater e desincentivar a corrupção, relançar a economia sem comprometer a sustentabilidade das finanças públicas, inverter a tendência descendente do ensino, etc. Desafios não faltam. Haja vontade de continuar o caminho.  

Aqueles anos 70 do século XX, vibrantes e plenos de mudança em Portugal e em Espanha, sentiram-se na música. Dos talentosos aos gozões, a nova toada musical alterou-se. Nas vésperas da revolução dos cravos, as criações musicais pré-anunciavam um ciclo diferente, impregnando as sonoridades da moda de uma poesia cheia de metáforas interpelativas, também úteis para se esquivarem à censura descarada, mas primitiva, dos detentores do lápis azul. A voz comovida e pura de Zeca Afonso ajudou a dar cor àqueles anos turbulentos, antes e depois do 25 de Abril, embora sejam especialmente bonitas as suas baladas menos políticas, mais oníricas:  

 

Um benefício directo da revolução foi o surgimento dos artistas censurados e dos discos proibidos, finalmente com direito de cidadania. No entanto, a arte voltava a politizar-se fortemente e, outra vez, em sentido único (enfim, o país moldável de 24 de Abril não mudara tanto assim, como lembrou sempre o diplomata José Cutileiro), só que virando esquerdista.  Mas muitas no repertório de Zeca Afonso continuam nostálgicas e de uma harmonia cristalina: 






Solnado na personagem do “Baladeiro” e outros comediantes souberam parodiar com o lado menos interessante (de doutrinação radical) dos ventos de mudança, a partir do final dos anos 60. Até no país pacato à beira-mar plantado, a hora pertencia aos poetas, a par de uns outros que se arvoravam em ‘educadores do povo’, revolucionários militantes a levar-se muito a sério, como cumpre aos ‘iluminados’. Chegara o ‘canto de intervenção’, que se ouvia por todo o lado, até em serões de algumas casas da alta burguesia lisboeta. Tudo fluía à portuguesa, semi clandestinamente, semi consentido pelo regime, que evitava enfrentar as elites. Já bastava as dores de cabeça com os estudantes, que punham as universidades e ferro e fogo, alimentando as manchetes da imprensa estrangeira ocidental, muito críticas do salazarismo e do marcelismo.  


Voltando à música de Abril: Zita Seabra conta um episódio divertido passado num comício, que lhe coube animar, em pleno PREC. Estava no auge da sua carreira no PCP e o sucesso a galvanizar as massas, naquela tarde, fê-la continuar ao microfone e alinhar com a multidão, quando começou a entoar a Grândola Vila Morena. Carlos do Carmo, mesmo à boca de cena, correu para o palco e arrancou-lhe o altifalante, segredando-lhe: isso não pode ser! Referia-se à inépcia musical da camarada Zita, inaceitável para os ouvidos melómanos do fadista. Revolução sim, mas desafinação não!  

Se 10 anos já era “muito tempo” para Paulo de Carvalho, fará meio século volvido sobre o 25 de Abril. Não me esqueço do que ouvi ao grande professor de História Jorge Borges de Macedo: a qualidade de um país depende, em grande parte, da capacidade de escolher e renovar as elites. Num país que se tem revelado incapaz de reter os mais novos, o futuro fica perigosamente tremido. Urge criar condições para a actual vaga migratória diminuir, gradualmente. Assistimos a uma sangria suicida de talentos num silêncio de aço, nada condizente com a liberdade que era suposto ter sido conquistada há 50 anos. Dos 3 D’s desejados pelos pais da democracia, como Sá Carneiro, Soares e outros, apenas 2 se cumpriram (com deficiências): Descolonização e Democratização. Falta o Desenvolvimento, crucial para uma democracia ser funcional e saudável. As gerações mais novas bem o merecem, para poderem dar continuidade a um país antigo, sábio no seu estilo muito próprio, herdeiro de uma História extraordinária. Que orgulho ser portuguesa! 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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