MAORIS E ZECA AFONSO
Uma instalação aerodinâmica da autoria de um colectivo de artistas maoris arrebatou o Leão de Ouro da Bienal de Veneza deste ano. O grupo nasceu em 2012, especializando-se em enobrecer materiais pobres e vulgares transpondo-os para o universo artístico. O objectivo (dizem) é elevar o espaço visual de quantos trabalham em fábricas, indústrias pesadas, oficinas, convertendo as matérias mais prosaicas em obras de arte. O resultado do entrançado de fios de lã, na forma aconchegante e protectora de uma casa impressiona pela beleza tranquila, sustentada por um jogo de luz e sombra fabuloso. O título «Takapau» remete para a indústria de moagem neo-zelandesa situada nas planícies homónimas.
Na véspera da comemoração dos 50 anos do 25 de Abril, muitas histórias pessoais se cruzam nesta data marcante, lembrado por quantos o viveram com idade mínima para guardar memórias de um dia sem ir à escola, com a televisão suspensa até meio da tarde, uma vozearia confusa nas diferentes frequências de rádio, os telefonemas dos pais a trocar impressões em surdina para perceber como tudo ia evoluindo, amigos (com idades entre os 10 e os 13) que um pai historiador fez questão de levar ao Largo do Carmo para lhes mostrar um momento de viragem da história nacional, etc.
Depois, sucederam-se as celebrações dos que confiavam na liberdade, enquanto as alas comunista, trotskista e de esquerda radical variada cerrava fileiras para arrastar o rumo dos acontecimentos para outra direção, sonhando com uma ditadura pró-soviética. Segundo a private joke sussurrada entre comunistas (e contado por uma ex-comunista) sobre os efeitos intencionalmente devastadores do bolchevismo para tomar o poder de assalto, a primeira e maior vítima é sempre a verdade. Assim, tudo deve ser dito ao contrário para manobrar e baralhar as populações, além do ataque cerrado a todas as estruturas do regime a depor. Quanto mais caos melhor, como se infere da tal graça soprada entre camaradas: «os comunistas lutam tanto, mas tanto, pela paz no mundo, que não deixam pedra sobre pedra»!
Quantas noitadas de vaticínios sobre o futuro ouvimos aos adultos mais próximos. Quanta tensão, quanto combate corajoso nos bastidores, até se chegar a um patamar mais sólido de liberdade real. Muito ficámos a dever a um punhado de heróis, que arriscou a vida para implantar a democracia, a liberdade em Portugal. As entrevistas de Maria João Avillez documentam com limpidez esses claros-escuros pós-revolucionários (no livro de 1994 agora reeditado «Do Fundo da Revolução» e no podcast do Observador).
Por junto – ao jeito dos amigos adolescentes conduzidos ao local mais famoso da Revolução, imortalizado em pintura por Maria Helena Vieira da Silva (gin de 28.ABR.2021) – sinto-me privilegiada por também ter testemunhado em vida (embora com pouca idade), o dia inaugural de um novo tempo. Confirmei, anos depois, quanto aquela quinta-feira primaveril marcara a História do país. Mais crescida, senti-me agradecida aos verdadeiros democratas, que abriram caminho a custo, durante o PREC, aceitando que o processo seria demorado, difícil, com altos e baixos e até algumas regressões. Mesmo no mais recente índice de democraticidade publicado pelo The Economist, Portugal ocupa um lugar próximo de países com democracias débeis. Percebe-se que ainda há um caminho a percorrer para o Estado assegurar as funções de soberania, aceitar ser escrutinado no exercício do poder, garantir a qualidade da Justiça para combater e desincentivar a corrupção, relançar a economia sem comprometer a sustentabilidade das finanças públicas, inverter a tendência descendente do ensino, etc. Desafios não faltam. Haja vontade de continuar o caminho.
Aqueles anos 70 do século XX, vibrantes e plenos de mudança em Portugal e em Espanha, sentiram-se na música. Dos talentosos aos gozões, a nova toada musical alterou-se. Nas vésperas da revolução dos cravos, as criações musicais pré-anunciavam um ciclo diferente, impregnando as sonoridades da moda de uma poesia cheia de metáforas interpelativas, também úteis para se esquivarem à censura descarada, mas primitiva, dos detentores do lápis azul. A voz comovida e pura de Zeca Afonso ajudou a dar cor àqueles anos turbulentos, antes e depois do 25 de Abril, embora sejam especialmente bonitas as suas baladas menos políticas, mais oníricas:
Um benefício directo da revolução foi o surgimento dos artistas censurados e dos discos proibidos, finalmente com direito de cidadania. No entanto, a arte voltava a politizar-se fortemente e, outra vez, em sentido único (enfim, o país moldável de 24 de Abril não mudara tanto assim, como lembrou sempre o diplomata José Cutileiro), só que virando esquerdista. Mas muitas no repertório de Zeca Afonso continuam nostálgicas e de uma harmonia cristalina:
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