05 junho 2024

Vai um gin do Peter’s ?

A VERDADE BELA, LIBERTADORA 

O grupo de miúdos, que organiza a edição anual do Faith’s Night Out (FNO), desde 2013, inspirou-se nas TedTalks para convidar oradores cativantes, de diferentes proveniências, para darem um testemunho de fé na sua vida, num par de minutos. Em 2018, a FNO propôs a vários pintores comporem uma obra alusiva à ousada promessa de Cristo citada nos Evangelhos: A VERDADE VOS FARÁ LIVRES.  O resultado ficou gravado numa curta-metragem com as peças artísticas apresentadas pelos próprios autores:  


A propósito de arte que nos emancipa, eleva, desintoxica até ao âmago, a Gulbenkian concluiu a temporada com um concerto memorável a interpretar uma das obras-primas de Verdi – o Requiem de homenagem ao grande escritor e pai da língua italiana moderna Alessandro Manzoni (1785-1873). O poeta e senador também se destacara como referência moral da jovem nação italiana, apenas nascida como Estado soberano, em 1861. A reunificação só ficaria completa uma década depois. O primeiro dia do concerto decorreu ao final da tarde do feriado do Corpo de Deus, este ano celebrado a 30 de Maio, num dia primaveril e de poente tardio, que esticou até ao limite a luz do entardecer que entrava no Grande Auditório pela parede de vidro por trás do palco.

Das lindíssimas composições para a Missa de Sufrágio pelo primeiro ano da morte de Manzoni, a mais famosa é a épica «Dies Irae», soberbamente executada pelo coro Gulbenkian. Outra de especial subtileza é a ária final de título auto-explicativo: «Libera Me». Toda a peça fluiu com uma tranquilidade cristalina, intercalando trechos celebrativos com admoestações apocalípticas e momentos de oração pungente.  



Sentiu-se o papel preponderante do maestro russo Stanislav Kochanovsky (1981-…) a dirigir a orquestra, os cantores líricos e o coro com um rigor invulgar. Já é  considerado uma sumidade no Ocidente, onde actua nas melhores salas de espectáculos. Parco de gestos, q.b. incomum para a função, revelou uma autoridade extraordinária. Não me lembro de ver cantores líricos tão atentos aos pequenos movimentos do regente. No fim, houve um momento sublime com o minuto de silêncio conquistado pelo maestro, antes de dar por finda a atuação e o público aplaudir de pé o concerto magnífico. Kochanovsky ilustrou, ao vivo, a validade da definição simplificada sobre música como combinação harmoniosa de sons e silêncios.  Aquele seu gesto final certeiro, discreto mas firme, a baixar os braços em câmara lenta para aguentar um silêncio longo após a última nota, dignificou a exibição do Requiem, colocando-o num patamar sacralizado, intocável. A beleza da peça de Verdi quadrou maravilhosamente com o feriado português.   

PROGRAMA DE SALA 

«REQUIEM DE VERDI
Coro e Orquestra Gulbenkian

Stanislav Kochanovsky Maestro
Carmela Remigio Soprano
Sonia Ganassi Meio-Soprano
David Junghoon Kim* Tenor
Luca Pisaroni Baixo-Barítono

Giuseppe Verdi
Messa da Requiem
1. INTROITUS: REQUIEM AETERNAM – KYRIE
2. SEQUENTIA: DIES IRAE
3. OFFERTORIUM: DOMINE JESU CHRISTE
4. SANCTUS – BENEDICTUS
5. AGNUS DEI
6. COMMUNIO: LUX AETERNA
7. LIBERA ME

COMPOSIÇÃO 1873-74 / rev. 1875
ESTREIA Milão, 22 de maio de 1874
DURAÇÃO c. 1h 25 min


A morte de Alessandro Manzoni, a 22 de maio de 1873, foi um acontecimento transcendente para a jovem Itália. Poeta e novelista, símbolo nuclear do Risorgimento, o movimento político e social que havia conduzido à unificação da península itálica num só estado, Manzoni era considerado, unanimemente, o pai da moderna língua italiana e a reserva moral da nação. 

No dia imediato à morte de Manzoni, Giuseppe Verdi escrevia ao editor Tito Ricordi que era seu desejo promover algo em memória do poeta. A proposta não tardou a chegar às mãos do Presidente da Câmara de Milão, Giulio Belinzaghi, que aceitou os termos do compositor: um Requiem, a ser estreado no primeiro aniversário da morte de Manzoni. As despesas de execução correriam pelo município milanês e Verdi asseguraria o pagamento da impressão das partituras, dos músicos envolvidos, bem como a direção musical. 

O compositor foi célere na escrita e, a 10 de abril do ano seguinte, enviou o manuscrito final à Ricordi. Contudo, dada a insistência de Verdi para que a homenagem decorresse numa igreja, começaram a surgir entraves à concretização do projeto. Era necessário que o Arcebispo de Milão autorizasse, a título excecional, o uso de vozes femininas e aceitasse o texto padrão do rito romano da Missa de Defuntos, ao invés do rito ambrosiano, prerrogativa da arquidiocese milanesa. As dispensas foram dadas, mas com a obrigação de todas as cantoras se apresentarem vestidas de preto e de cabeça coberta com um véu. 

A 22 de maio de 1874, estreava na igreja de São Marcos a Messa da Requiem per l’anniversario della morte de Manzoni, com efetivos musicais generosos, um coro de 120 vozes, uma orquestra de 100 instrumentistas e os solistas Teresa Stolz (soprano), Maria Waldmann (mezzo), Giuseppe Capponi (tenor) e Ormondo Maini (baixo).

Obra maior do repertório coral do séc. XIX, o Requiem de Verdi representa a libertação dos constrangimentos do género, alcançando uma liberdade e flexibilidade musicais que dificultam a sua caracterização ou, pelo menos, categorização. 

Principia com um murmúrio, numa atmosfera emocional de profundo desalento. A secção central, Te decet hymnus, contrasta pela rigidez vocal, num tecido contrapontístico estrito. O ambiente inicial é retomado, desembocando no Kyrie, primeira manifestação de um registo teatral assumido. A frase melódica ascendente de contorno virtuosístico percorre os solistas, aos quais se junta o coro nas sucessivas invocações. 

O Dies irae começa com uma massa instrumental tempestuosa, a que se sobrepõe o coro, proclamando o texto e forma incisiva e cromática, numa ilustração sonora impressionante. O sussurro pianíssimo nas palavras Quantus tremor extingue-se no preciso momento em que soa uma longa fanfarra, num crescendo telúrico, metáfora da trombeta do Juízo Final, Tuba mirum, sobreposta pelas entradas sucessivas do coro até uma suspensão apoteótica. (…)

O andamento final, Libera me, foi, na realidade, o ponto de partida de toda a composição. Escrito, na sua versão original em 1868, correspondia ao contributo de Verdi para um projeto que não chegou a bom porto, uma Messa da Requiem per Rossini, obra de composição coletiva, reunindo os doze compositores italianos em atividade mais conceituados, cabendo a cada um deles uma secção, segundo um plano formal e tonal pré-estabelecido. Apesar de revisto em 1874, as ideias essenciais do Introitus e do Dies irae, estavam já aí delineadas de forma concisa. Diálogo entre o soprano, o coro e a orquestra, o Libera me é, por si só, um verdadeiro monumento de intensidade dramática, de profundo impacto emocional, testemunhando o medo, a absolvição, a paz e a incerteza, um mundo tão humano quanto divino.»

Comentário musical assinado por José Bruto da Costa

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

   

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