21 janeiro 2025

Da morte dos trastes

Tenho uma certeza dogmática: Deus está na vida de cada pessoa. Deus está na vida de cada um. Mesmo que a vida de uma pessoa tenha sido um desastre, tenha sido destruída pelos vícios, pela droga ou por qualquer outra coisa, Deus está naquela vida. Pode-se e deve-se procurar na vida humana. Mesmo que a vida de uma pessoa tenha sido um terreno cheio de espinhos e ervas daninhas, há sempre um espaço onde a semente boa pode crescer. É preciso confiar em Deus.

Papa Francisco, in Esperança (não garanto a transcrição correcta)

***

Todos nós fomos confrontados com o pensamento interior, ou verbalizado, relativamente a alguém que morreu: era um traste, não faz cá falta nenhuma. Foi um alívio para quem cá fica. Penso que nunca a disse de ninguém, já a ouvi a alguém. Nalguns casos a irritação vem acompanhada de outra ideia: se calhar arrependeu-se à última da hora para garantir que não ia para o inferno. Estas frases, não totalmente desprovidas da mais elementar justiça ou razão, enfermam de presunção mas, também, de alguma lógica cuja discordância é desafiante. 

Em primeiro lugar, não nos compete, na maioria das vezes, ajuizar sobre a falta que fazem os que partem, ou sobre o sentimento com que ficam os seus mais próximos. A menos que todos verbalizem o mesmo, quem somos nós para dizer que a morte de fulan@ foi um alívio para os sobrevivos? A falta que as pessoas fazem às pessoas não estará, penso eu, no domínio das ciências exactas. A História, o nosso conhecimento da espécie humana, ou a literatura assente nalgum realismo, estão repletas de exemplos de pessoas - trastes - que fizeram falta. Admito que, por vezes, sejam motivos misteriosos e, por isso, quem sou eu para afirmar o alívio que a morte de alguém representa? Esta é a parte da presunção que me é fácil denunciar.

Há alguma lógica, no entanto, relativamente à irritação que as pessoas têm quanto aos arrependimentos de última hora. Uma pessoa é um traste uma vida toda e, num repente, quando vê aproximar-se o momento do seu encontro com Deus, decide arrepender-se, temente da Geena, onde o verme não morre e o fogo não se apaga (Mc. 9:47, 48). Faz algum sentido? Há alguma justiça divina neste arrependimento que, para algumas pessoas, não é mais do que um truque malandro? A resposta é dupla: (i) Deus não se deixa enganar... e (ii) há aquela famosa passagem da Bíblia no diálogo entre o ladrão e Cristo, ambos pregados na cruz (Lc, 23:42,43):

E acrescentou: "Jesus, lembra-te de mim, quando estiveres no teu Reino."
Ele respondeu-lhe: "Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso." 

Podem morrer os trastes - e de alguns sei que o foram uma parte substantiva da vida - mas tento não ser eu a dizer que não fazem falta a ninguém, nem a denunciar os golpes baixos para garantir uma salvação eterna. Não sei o suficiente para ter estas certezas.

JdB 

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