24 janeiro 2025

Divagações soltas sobre um mesmo tema

Sempre que me lembro de um determinado escritor - um bom escritor! - vejo-lhe os tiques de arrogância, inveja e maledicência. Também lhe vejo os livros que escreveu e eu li, mas não é isso que vem ao caso. Como acontece a muitas pessoas, um dia foi diagnosticado com uma doença grave e foi beneficiário de uma epifania (na sua imensa sabedoria, o povo diz: deu uma volta de 360º...) traduzida em pensamentos lindos: é preciso ver o melhor nas pessoas, há que estimar o tempo que é finito, vamos dar a atenção que lhes é devida aos pequenos prazeres e às irrelevâncias da vida, e as crianças Senhor / porque lhes dais tanta dor / porque padecem assim..., etc. Um dia, como acontece, felizmente, a muitas pessoas, recuperou a saúde e foi vítima de uma anti-epifania - regressaram os tiques de arrogância, inveja e maledicência. O contacto deste escritor com um certo alinhamento cósmico sábio esteve indexado à competência dos médicos e à eficácia dos fármacos.

***

Como já tive oportunidade de referir neste estabelecimento, para efeitos do meu doutoramento tenho vindo a entrevistar um conjunto alargado de Pais de crianças com cancro. O último grupo - o mais desafiante - era constituído por Pais cujos filhos tinham morrido há cerca de dois ou três anos. Todos eles referem o mesmo: sentem-se hoje melhores pessoas do que eram antes dos filhos morrerem. Não são forçosamente mais esmoleres, mais santos, mais perfeitos, mas sentem, talvez, um olhar diferente sobre a vida, um olhar mais arguto; e desvalorizam o que não é relevante - afinal, passaram por um problema (quase) sem par na existência de um Pai. 

O discurso destes Pais está alinhado com a minha própria sensação, e com a sensação de muitos outros Pais em luto com quem fui falando ao longo dos meus anos de voluntariado internacional: somos diferentes e - que não se veja nisso presunção - sentimo-nos melhores pessoas. É importante ressalvar que estes Pais que eu conheço se dedicam ao voluntariado, não sabendo eu se se dedicam aos outros porque são melhores pessoas ou se tornaram melhores pessoas porque se dedicam aos outros.

***

Ofereço-vos um lugar-comum: a valorização que fazemos das qualidades dos outros (ou das qualidade humanas, em sentido genérico) varia com a nossa idade e circunstância: aquilo que eu valorizava nos meus amigos aos 20 anos, ou antes de 2001 - ano de todos os anos! - não é o que valorizo agora. Tenho uma idade diferente, vivo circunstâncias diferentes. 

A partir de uma determinada altura, comecei a dar importância à gratidão e a usar a expressão pouco consensual: tenho uma dívida de gratidão com... Não vulgarizo a expressão através da utilização excessiva, mas aplico-a a quem me resgatou em tempos difíceis, a quem me abriu os olhos para um mundo diferente, a quem me ajudou a encontrar um sentido para a vida, ou a quem me orientou - no sentido metafórico do termo - a regressar a casa. Também gosto de usar a expressão com quem, não sendo protagonista de nada impactante, se manteve firme e, com isso, marcou a diferença: a transparência em tempos de opacidade, a fidelidade em tempos de traição, a honestidade em tempos de canalhice, a memória em tempos de esquecimento.     

***

Aquilo que diferencia um Pai que perdeu um filho, de um escritor quezilento que passa pelo desafio de uma doença grave é, ironicamente, a indexação à competência dos médicos e à eficácia dos fármacos: o escritor repõe as condições iniciais quando se encontra curado. Um Pai não o consegue - aquilo em que se tornou é para a vida...  

JdB

Sem comentários:

Acerca de mim

Arquivo do blogue