Não usarei a expressão sou um ávido consumidor para referir o meu gosto por programas televisivos de cozinha, mas posso garantir que sou um espectador muito regular. Faço-o, não como uma espécie de auto-flagelo (a salivação em frente a um televisor) que compense a minha luxúria, mas como fonte de aprendizagem. Como todos nós, presumo eu, tenho programas de que gosto, programas pelos quais passo com um ar vagamente interessado, programas dos quais fujo como o diabo da cruz. O meu critério não é sempre o tipo de cozinha que é apresentado, mas também a empatia que me suscita o/a cozinheiro/a. Há pessoas que me maçam, outras que me são desagradáveis aos olhos ou aos ouvidos. É a minha noção de estética.
Um determinad@ cozinheir@ terminava o seu programa com uma frase irritante (e não garanto o verbatim): cozinhar é como a vida; é tudo melhor se for feito à nossa maneira. Talvez seja a mesma pessoa que tinha outro pensamento irritante, assente na ideia do amor como o melhor ingrediente numa receita. Por um lado, fazer as coisas à nossa maneira; por outro lado, o amor. Não estou certo do raciocínio, mas parece-me haver aqui uma contradição nos termos: onde é que está o amor numa actividade que se quer feita à nossa maneira?
Derramemos um primeiro olhar sobre o amor como ingrediente, a par dos cominhos, da cebola ou da couve-coração. E olhemos para o amor como factor de diferenciação: há um dever de parcimónia na utilização dos cominhos, de translucidez certa na cebola refogada, de consistência na couve estufada. Mas não há limite definido para o afecto, pelo que se pode - ou deve - colocar q. b. (quanto baste, para quem não domina o jargão) à frente de amor na lista de ingredientes. Assim sendo, a qualidade dos manjares depositados em cima da mesa, ou colocadas a concurso, não depende da perfeição do ponto de estrada, mas da quantidade doseada de sentimento.
Por outro lado, havendo uma certa arte na feitura de um prato, podemos extrapolar que haverá uma certa arte na pintura de uma aguarela e uma certa arte na composição de uma peça musical. À semelhança do que se passa numa cozinha, o pintor poderá dizer que o factor diferenciador do seu quadro é o amor, não o domínio das cores; e o músico poderá dizer que o factor diferenciador da sua obra musical é o amor, não a entrada dos violinos. A fim de preparar uma futura escola de artistas, sugere-se que, tanto a Escola de Belas Artes, como o Conservatório, incluam no seu curriculum uma cadeira intitulada O impacto do amor na criatividade. A genialidade de Rembrandt ou de Beethoven analisada, não à luz da sua técnica, mas do seu coração.
Infelizmente - ou talvez não - não é o amor que define um artista, nem é o amor que determina uma obra. Não o perceber é achar que o afecto reside numa vara de arames, num pincel ou num fagote. O pensamento é lindo, mas talvez não seja mais do que possidónio. Como o são algumas coisas que classificamos como lindas.
JdB
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