21 maio 2025

Vai um gin do Peter’s ?

 VÍDEOS FANTÁSTICOS  

Começo pela música, com uma obra especialmente pacificante e vitamínica da banda irlandesa Kodaline: 


Na próxima Sexta-feira, às 19h00, a Gulbenkian volta a passar em sinal aberto o concerto onde será interpretado o Requiem de Mozart, pelo coro e pela orquestra da Fundação, sob a batuta da maestrina Stephanie Childress. Esta obra é especialmente intrigante, porque foi composta no final de vida do compositor. Sentindo-se em contra-relógio pela degradação galopante da sua saúde, Mozart empenhou-se nela freneticamente (segundo ficou para a história), o que agravou a sua débil condição física. O facto de a encomenda (1781) desta Missa de Requiem provir de um mecenas anónimo, reverberou em Mozart como um mau presságio do além sobre a aproximação da sua morte, como se estivesse a preparar as suas exéquias fúnebres. Embora não tenha conseguido concluir a peça, esta tornou-se proeminente no mundo ocidental, depois de o austríaco (que morreu esquecido, no mais sombrio anonimato) ter sido reabilitado por Beethoven. 

Outra gravação imperdível é a entrevista, em modo casual e empolgante, do académico de história da ciência Henrique Leitão (HL), doutorado em física, Prémio Pessoa, em 2014, membro da Academia de Ciências, onde é o responsável pela Biblioteca, além de inúmeros cargos internacionais relevantes. Expõe com limpidez e originalidade o contributo decisivo dos Descobrimentos portugueses para a história da ciência mundial, de quinhentos e de seiscentos. O diálogo integra o “CdK podcast” do português conhecido por ‘Guru Mike Billions’, que goza de enorme audiência junto dos mais novos.

A conversa arranca com a causa da quase inexistência de Prémios Nobel atribuídos a portugueses, que HL explica pela ancestral falta de qualidade do ensino luso. Segue-se um conselho audacioso para se aplicar ao ensino a meritocracia e o profissionalismo das nossas academias de futebol, capazes de produzir craques no ‘desporto rei’. Ciente de não faltar talento, mas antes boas estratégias educativas, ilustrou também com as medalhas de ouro ganhas por estudantes portugueses nas exigentíssimas Olimpíadas da Matemática, logo que o Ministério da Educação e os Clubes de Matemática nacionais começaram a preparar os alunos para aquele campeonato.

HL revela, depois, um traço invulgar do país, no período de século e meio a partir do segundo quartel do séc. XVI, que foge ao padrão interpretativo com que os historiadores tradicionais costumam descortinar o passado, procurando os génios, os heróis nos vários campos do conhecimento e das proezas bélicas. Como essa chave de leitura não se aplica ao período áureo dos Descobrimentos portugueses, com pouquíssimos génios identificáveis (excepção no campo científico para um Pedro Nunes, um Francisco de Melo, um Garcia da Orta), houve maior dificuldade em interpretar a história portuguesa… mas omito os motivos nomeados por HL, para evitar ser completamente spoiler desta óptima entrevista.    


É entusiasmante relembrar as provas e as causas da excelência do saber nacional, a partir do XVI, durante cerca de século e meio. Quando Portugal se propôs aventurar na navegação em alto-mar, requerida para sulcar o oceano Atlântico no Hemisfério Sul (onde é menos visível a estrela polar, que orientava a navegação no Mediterrâneo, para além de outras dificuldades), as necessidades náuticas impulsionaram a evolução dos conhecimentos matemáticos, da astronomia e da astrofísica, da geografia, da cartografia, etc. O resultado foi que o país acumulou um saber prático interdisciplinar, que o tornou líder e pioneiro na navegação oceânica. Por mais de um século, Portugal deteve o conhecimento mais avançado do mundo, elevando o patamar do saber científico global e até revolucionando o paradigma científico do Ocidente. Isto prova-se também pelos testemunhos dos estrangeiros sobre Portugal, palco de intensa guerra de espionagem de mapas e portulanos, além do pouco falado rapto de um piloto português, pelo famoso Francis Drake, que foi crucial para a Grã-Bretanha melhorar a sua capacidade naval!

Mais adiante, HL explica a relevância da expansão marítima como fase definidora de cada uma das duas potências ibéricas, forjando-lhes a identidade. Por isso, tratar esta época como um episódio vulgar e menor no somatório de novecentos anos de história acaba por ser redutor e tornar indecifrável o país que somos, hoje!  

Naturalmente, sabemos que aquela supremacia de Portugal se esvaiu no espaço de século e meio, o que HL volta a atribuir à falta de qualidade do nosso ensino, que já não nos permitiu acompanhar o salto científico e tecnológico de meados de seiscentos, começando a ficar para trás. Claro que a ocupação filipina e a Inquisição agravaram a situação nacional, mas estão longe de ser a primeira causa do nosso atraso. Lembra HL que é autoexplicativo, durante toda a Idade Média – bem antes da Inquisição e dos Filipes – ter sido necessário enviar os nossos melhores para estudarem nas universidades estrangeiras, por se reconhecer que as nacionais eram demasiado fracas e periféricas. 

A nossa endémica desvalorização da educação (começando por grande parte das elites, que encaravam o estudo com um hobby dispensável para um senhor) obstaculizou, durante séculos, a criação de talentos científicos, que exige um ensino muito sofisticado, estratificado a partir dos níveis mais elevados e trabalho árduo. Diz tudo – cita HL – a nossa hierarquia académica continuar tão dissociada da qualidade científica, atestando a ausência de meritocracia em todos os patamares do ensino e explicando a quantidade insólita de decisões inadequadas que são tomadas. Naturalmente, este fenómeno piorou com as cíclicas revoadas de igualitarismo ideológico cego (a última, bem recente), que nivelam sempre por baixo. Dá o exemplo da gala que um português comum e figuras públicas fazem de terem sido maus alunos, copiado nos exames ou feitos aos Domingos ou plagiado em provas científicas ou gabar-se de gerir uma empresas apenas com as quatro operações aritméticas básicas, que são práticas inconfessáveis em países onde se cultiva o saber e há níveis mínimos de meritocracia, como no Reino Unido, na Alemanha ou nos EUA. Para analisar melhor esta lacuna na mentalidade lusa, pouco a ver com as dificuldades financeiras, HL contrasta o caso dos emigrantes pobres e analfabetos, que vão para os Estados Unidos: enquanto o filho do pescador asiático já vai para a universidade, os descendentes lusos demoram, em média, quatro gerações a chegar à academia, insuficientemente valorizada pela sua família.

Ainda assim, HL revela algum optimismo quanto ao futuro, designadamente pelo acesso que a net proporciona ao que de melhor se produz, no mundo. Hoje, qualquer estudante nacional pode assistir (e fazem-no) às aulas dos melhores académicos ocidentais do planeta, rasgando horizontes. Refere ainda um programa lançado pela UE, que passou a dar bolsas financeiras avultadas a académicos com talento, em vez de as despejar pelas estruturas das universidades europeias, pejadas de carreiristas sem qualidade científica. 
   
A conversa flui sem se dar pelo tempo, numa abordagem original e interpelativa, que nos ajuda a repensar o país e as escolhas feitas, ao longo de séculos, antevendo-se algum potencial para se começar a inverter os parcos resultados nacionais a nível científico e cultural. Confirma-se, igualmente, a relevância do contributo individual, se houver coragem e ânimo para persistir, mesmo quando em redor predomina o desinteresse. 

No final, o Prof. HL conclui, sublinhando que o interesse pela história nacional é uma forma de afeição indispensável pelo próprio país. Mais: afirma que essa afeição constitui o élan do progresso nacional, que se alimenta (logo depende) do desejo de desenvolver o país. Faz este alerta, por detectar que o ensino recente da história nacional – por toda a Europa – deixou-se contaminar por um cinismo altamente corrosivo, marcado pelo repúdio do passado. A narrativa histórica reduziu-se ao desfile das atrocidades cometidas, algumas q.b. agigantadas, até por apenas se revelar o lado negro dos factos. Este viés negativo, crivado de ódio ao legado histórico, retira aos mais novos o gosto pelo seu país, considerado indigno de ser amado. Claro que não se pretende empolar glórias, nem fantasiar nada do que aconteceu, mas antes narrar com rigor e a isenção possível o curso dos acontecimentos. O passado de qualquer país merece ser conhecido e aprofundado, não por ser o melhor do mundo, mas por se relacionar com a história pessoal dos seus concidadãos, como sucede com a nossa família, onde o amor não provém dos méritos dos seus elementos (que dispensamos de serem campeões nalguma modalidade), mas por ser o nosso contexto de vida afectiva, a raiz da nossa identidade. 

Sabemos quanto algum wokismo tem tentado uniformizar os seres humanos, apagando essa raiz afectiva e constitutiva do “eu”, no fã de esbater todas as diferenças nacionais, regionais, individuais. Assim se subtraem as óbvias diferenças no passado de cada família, de cada povo, quando se pretende eliminar os traços de diferenciação, que residem no âmago da identidade humana. Precisamente Churchill, ciente do valor da história narrada com sentido crítico (sem picos emotivos nem distorções), para permitir ler os sinais dos tempos e fazer escolhas lúcidas, deu este conselho marcante à jovem Rainha Isabel II (contado pela própria): «the farther more you can look, the farther forward you are likely to see». HL acrescenta a importância do amor ao país tal e qual ele é, assim como a importância de se ter um horizonte de vida maximamente amplo, com sentido da transcendência, sem nos conformarmos com um dia-a-dia, em que se vai matando o tempo com os prazeres e as distracções possíveis.  Essa pessoa, cujo ideal se poderia traduzir em «ir andando benzinho», dificilmente se empenhará em grandes projectos, em feitos maiores, de longo prazo, para lá do seu tempo de vida... O progresso está comprometido, se não se recuperar um horizonte maior, em concreto na Europa, demasiado secularizada,  materialista, economicista. O dinheiro per se é um móbil curto para se querer arriscar e tentar ir mais longe. Vale a pena ouvir esta entrevista, como vale a pena a Europa acordar, começando por cada um... 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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