04 dezembro 2008

Lanterna Vermelha


(continuação do post de 28 de Novembro com o mesmo nome)

Àquela hora do fim de tarde, em particular quando nalguns meses do ano a noite começava a cair cedo e a escurecer ruas e ruelas, becos e praças, o movimento aumentava. Os carros arrumavam-se segundo as indicações de pessoas discretas que vendiam, a troco de uma moeda de euro, informações sobre espaços e instruções sobre manobras. A simultaneidade de automóveis a chegar não perturbava a circulação. Havia uma calma explícita e intuída, aceite, como um código de urbanidade não discutível e de tal modo universal que atravessava aquela sociedade peculiar, democrática e quase cristã no seu esplendor de convívio e igualdade. Na realidade, nada se questionava, tudo era pacificamente aceite, naquele assumir tão puro de que ninguém valia mais do que ninguém. Os primeiros a chegar arrumavam onde havia espaço. Os últimos repetiam a rotina dos precedentes e todos se cumprimentavam com uma educação discreta e amável, tal e qual os membros da mesma confraria a quem une o mesmo gosto – do bacalhau à Zé do Pipo aos túbaros, dos diospiros à banana Pa Si – com rituais e linguagem próprios, resguardados para os iniciados.

De início, o bairro circundante observou o movimento com uma curiosidade genuína, como se a terra fosse invadida por uma manifestação de pinguins legitimamente enfurecidos com o aquecimento global. Depois passaram a habituar-se àquela profusão de cavalos de potência, ao esplendor das viaturas, à circulação de gente variada e heterogénea – porque até um cego percebia que ali não havia, pelo menos na aparência, factores em comum. Da habituação passaram para o desinteresse e, depois, para a indiferença. Entre estas etapas perpassou pelos habitantes a especulação, que é a imaginação dos maldosos: quem são, o que fazem, porquê aqui, aonde vão. A velha pergunta sobre a nossa identidade e os nossos destinos formulava-se com um sotaque popular e bairrista, voltada para os outros.

(continua)

MTS

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