era uma vez um cineasta português, verdadeiramente excêntrico, veramente iconoclasta, corajosamente fiel à sua muito particular paleta de remédios para a alma (a dele e a dos outros).
ao longo da segunda metade da sua vida cinematográfica, quando o humilde reconhecimento que esta terrinha possibilita começou enfim a aparecer (ainda que a partir das margens; em sentido contrário, o frenesim proto-censório ia-se fazendo notar..), emergiu dos confins da cultura clássica, espécie de quintessência das artes antigas após processamento pelos mecanismos da modernidade, a figura do grande demiurgo dos pobrezinhos, impotente e inoperante - esse joão de deus que joão césar monteiro tornou, mais do que seu alter-ego, representação no arame de uma certa portugalidade 'feia, pobre e nem sequer má'. bebendo no anátema lançado sobre a pátria por escritores novencentistas e depois confirmado por alguns ditos modernistas, estranhamente (ou nem tanto) de acordo: aqui, somos todos pequeninos, de mãos-nos-bolsos, assobiando para o ar modinhas ultrapassadas, num esforço chão de passarmos despercebidos e, 'en passant', aproveitando para dar umas bicadinhas no parceiro do lado, não vá este enganar-se e mandar o anátema às malvas, com todo o rol de sucessos e alegrias que daí, perigosa e potencialmente, poderão advir, perturbando sobremaneira a ancestral ordem do sossego.
joão de deus - vulgo 'o senhor joão' - é herdeiro de sísifo (nunca chega a lado nenhum), herdeiro óbvio e vampiresco de nosferatu (a sua 'pathos' negra vem desse lado: tudo se trinca, tudo se prova, mas nada se transforma, nada nos consola, para sempre destinados ao sono nas profundezas do que está algures, mas não está verdadeiramente em sítio algum), herdeiro ainda do nosso queirosiano joão da ega, na sua paleta 'nonchalante' de atitudes inconsequentes. um diletante 'au point' e 'chic a valer', na bolsa de valores daqueles desterrados e derrotados do mundo que nem sequer chegaram a entrar em campo. desistentes por definição, por medo congénito, incontornável, de qualquer possibilidade de 'isto ser diferente' (que sempre contemplaria uma canseira de responsabilidades, as quais importa descartar bem cedo, para bem longe).
no bar que o acaso fez cruzar com os nossos passos, um outro 'senhor joão' beberricava o seu cafézinho-com-água-das-pedras de sábado. lançando semi-interrogações e nada subtis comentários aos co-discípulos de botequim, cumpria programa quase religioso: a via-sacra do benfica, os gatunos que mandam em nós, esta gentinha que mal se governa e não se deixa governar, naquele registo de tio-avô que, se fosse Inglês, seria excêntrico e mordaz, mas que, nascido por estas bandas, não passa de um exemplar em mau de um terceiro figurante de um filme série Z, saído do arquivo-morto do neo-realismo italiano mais serôdio.
até os 'senhores joões' que nos calham em sorte, respeitosamente ('o teu respeitinho é muito bonito, é o mais lindo de todos', cantava o outro, no amanhecer ébrio da revolução), são uma pálida representação do 'senhor joão' a que, finamente, joão césar monteiro deu vida nos écrans cá da província.
estava eu nestas profundas cogitações, quando me apercebi de que, algures na minha vida civil, meia-dúzia de personagens (substantivo masculino, eu sei, mas desta feita quase todas femininas, que querem? os linguistas que me desculpem..) desataram a chamar-me 'senhor joão, para aqui'; 'senhor joão, para ali'; 'oh, senhor joão, veja lá'. num país de falsos doutores, há uma terrível falta de senhores. portanto, tudo devidamente sopesado, tinha razões para sorrir em frente, seguir em frente. o problema, diacho!, o problema, dizia, eram precisamente as minhas cogitações. será que afinal também eu não passo de um sósia, num pálido tom sépia, dos 'senhores joões' à beira-mar plantados?
- 'quem da pátria foge, de si mesmo escapa?' - diga-me lá, senhor joão césar monteiro.
e ele responde:
- 'tão pequeno país, para tão grande iconoclasta, rapaz. não se podendo esticar o país, encolhe-se o rapaz. perdão, o iconoclasta.'
- 'senhor joão', 'senhor joão' , conte-nos lá.. e daquela vez que torrou o dinheiro do mecenas, que lhe havia encomendado uma obra, num inter-rail tardio e talvez lúbrico por essa europa fora. lembra-se? quando regressou, filmou a correr umas coisas e foi, ainda a correr, mostrar aos santinhos-padroeiros o resultado. parece que não gostaram. e o estimado amigo, logo ali, retorquiu: 'queriam o quê, por quatrocentos contitos? que vos desse ópera?!'
- pois é, 'senhor joão', assim não vamos lá.
bebamos o cafézinho-mai'la-água-das-pedras desta sexta-feira, enquanto esquadrinhamos os jornalecos gratuitos, cotejamos as novidades, comentamos com o parceiro do lado os detalhes mais pícaros.
- 'comédia é o que acontece aos outros; tragédia é o que nos acontece a nós', não é 'senhor joão'?
- e tragicomédia, 'senhor joão' , é o que nos acontece a todos.
- feliz natal, 'senhor joão'.
- obrigado, 'senhor joão'. e o nosso sporting, joga logo? vou para casa, que é uma pressinha.
eu tenho um sonho: viver num país a sério, mesmo chamando-me joão. um país em que não exista 18% de 'risco de pobreza' (dos jornais), quando outros 18% já lá estão. e que se preocupe, a sério, com a pobreza espiritual, porque 'ela não mata, mas dificulta'.
'queria de ti um país de bondade e de bruma
ao longo da segunda metade da sua vida cinematográfica, quando o humilde reconhecimento que esta terrinha possibilita começou enfim a aparecer (ainda que a partir das margens; em sentido contrário, o frenesim proto-censório ia-se fazendo notar..), emergiu dos confins da cultura clássica, espécie de quintessência das artes antigas após processamento pelos mecanismos da modernidade, a figura do grande demiurgo dos pobrezinhos, impotente e inoperante - esse joão de deus que joão césar monteiro tornou, mais do que seu alter-ego, representação no arame de uma certa portugalidade 'feia, pobre e nem sequer má'. bebendo no anátema lançado sobre a pátria por escritores novencentistas e depois confirmado por alguns ditos modernistas, estranhamente (ou nem tanto) de acordo: aqui, somos todos pequeninos, de mãos-nos-bolsos, assobiando para o ar modinhas ultrapassadas, num esforço chão de passarmos despercebidos e, 'en passant', aproveitando para dar umas bicadinhas no parceiro do lado, não vá este enganar-se e mandar o anátema às malvas, com todo o rol de sucessos e alegrias que daí, perigosa e potencialmente, poderão advir, perturbando sobremaneira a ancestral ordem do sossego.
joão de deus - vulgo 'o senhor joão' - é herdeiro de sísifo (nunca chega a lado nenhum), herdeiro óbvio e vampiresco de nosferatu (a sua 'pathos' negra vem desse lado: tudo se trinca, tudo se prova, mas nada se transforma, nada nos consola, para sempre destinados ao sono nas profundezas do que está algures, mas não está verdadeiramente em sítio algum), herdeiro ainda do nosso queirosiano joão da ega, na sua paleta 'nonchalante' de atitudes inconsequentes. um diletante 'au point' e 'chic a valer', na bolsa de valores daqueles desterrados e derrotados do mundo que nem sequer chegaram a entrar em campo. desistentes por definição, por medo congénito, incontornável, de qualquer possibilidade de 'isto ser diferente' (que sempre contemplaria uma canseira de responsabilidades, as quais importa descartar bem cedo, para bem longe).
no bar que o acaso fez cruzar com os nossos passos, um outro 'senhor joão' beberricava o seu cafézinho-com-água-das-pedras de sábado. lançando semi-interrogações e nada subtis comentários aos co-discípulos de botequim, cumpria programa quase religioso: a via-sacra do benfica, os gatunos que mandam em nós, esta gentinha que mal se governa e não se deixa governar, naquele registo de tio-avô que, se fosse Inglês, seria excêntrico e mordaz, mas que, nascido por estas bandas, não passa de um exemplar em mau de um terceiro figurante de um filme série Z, saído do arquivo-morto do neo-realismo italiano mais serôdio.
até os 'senhores joões' que nos calham em sorte, respeitosamente ('o teu respeitinho é muito bonito, é o mais lindo de todos', cantava o outro, no amanhecer ébrio da revolução), são uma pálida representação do 'senhor joão' a que, finamente, joão césar monteiro deu vida nos écrans cá da província.
estava eu nestas profundas cogitações, quando me apercebi de que, algures na minha vida civil, meia-dúzia de personagens (substantivo masculino, eu sei, mas desta feita quase todas femininas, que querem? os linguistas que me desculpem..) desataram a chamar-me 'senhor joão, para aqui'; 'senhor joão, para ali'; 'oh, senhor joão, veja lá'. num país de falsos doutores, há uma terrível falta de senhores. portanto, tudo devidamente sopesado, tinha razões para sorrir em frente, seguir em frente. o problema, diacho!, o problema, dizia, eram precisamente as minhas cogitações. será que afinal também eu não passo de um sósia, num pálido tom sépia, dos 'senhores joões' à beira-mar plantados?
- 'quem da pátria foge, de si mesmo escapa?' - diga-me lá, senhor joão césar monteiro.
e ele responde:
- 'tão pequeno país, para tão grande iconoclasta, rapaz. não se podendo esticar o país, encolhe-se o rapaz. perdão, o iconoclasta.'
- 'senhor joão', 'senhor joão' , conte-nos lá.. e daquela vez que torrou o dinheiro do mecenas, que lhe havia encomendado uma obra, num inter-rail tardio e talvez lúbrico por essa europa fora. lembra-se? quando regressou, filmou a correr umas coisas e foi, ainda a correr, mostrar aos santinhos-padroeiros o resultado. parece que não gostaram. e o estimado amigo, logo ali, retorquiu: 'queriam o quê, por quatrocentos contitos? que vos desse ópera?!'
- pois é, 'senhor joão', assim não vamos lá.
bebamos o cafézinho-mai'la-água-das-pedras desta sexta-feira, enquanto esquadrinhamos os jornalecos gratuitos, cotejamos as novidades, comentamos com o parceiro do lado os detalhes mais pícaros.
- 'comédia é o que acontece aos outros; tragédia é o que nos acontece a nós', não é 'senhor joão'?
- e tragicomédia, 'senhor joão' , é o que nos acontece a todos.
- feliz natal, 'senhor joão'.
- obrigado, 'senhor joão'. e o nosso sporting, joga logo? vou para casa, que é uma pressinha.
eu tenho um sonho: viver num país a sério, mesmo chamando-me joão. um país em que não exista 18% de 'risco de pobreza' (dos jornais), quando outros 18% já lá estão. e que se preocupe, a sério, com a pobreza espiritual, porque 'ela não mata, mas dificulta'.
'queria de ti um país de bondade e de bruma
queria de ti o mar de uma rosa de espuma'
e de ti, e de ti, e de ti, e de mim, e de todos.
é isso, senhor cesariny. é isso.
Feliz Natal.
[este texto foi construído a partir do livro 'joão césar monteiro' (edições cinemateca portuguesa), da memória viva dos seus filmes em mim, da poesia de mário cesariny, do quotidiano da grande cidade que todos os dias me enfia um gancho de direita na face e um directo de esquerda no peito, dos tempos em que me deslumbrava nas grandes salas de cinema de lisboa, de vestígios do neo-realismo italiano, da leitura dos jornais díários, dos episódios observados nos cafés de bairro que frequento de dia e nalgumas noites. e de tudo aquilo que em mim existe de tudo o que existe. e de tudo aquilo que nem sonho que existe (mas existe).]
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