05 janeiro 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, 5 de Janeiro

Primeiro dia na Fábrica da Ilusão. Um dos primeiros clientes foi o Sr. Roberto Costa que, ao apresentar-se, me deu um cartão-de-visita dobrado no canto, escrevendo a morada da Repartição de Finanças onde era chefe, não fosse eu precisar de algum conselho. Vi-lhe uma letra bonita e pequena, lenta e indiferenciada. Igual, estou certo, à forma como desempenha as suas funções. Há pessoas assim, que atravessam o mundo, a vida, as carreiras e os gabinetes com um vagar e uma invisibilidade que podem comover, passado o desprezo inicial que temos por tudo aquilo que nos parece insignificante, improdutivo, incapaz de agitar uma molécula do universo.

O Sr. Costa aproximou-se tímido, viúvo, com um fato em estado impecável comprado nas oportunidades de uma loja de bairro. Tudo nele revela cautela, atenção. Dobrará as calças com esmero, respeitando os vincos que engomou com diligência ao fim da noite, enquanto a televisão debita novelas felizes passadas em casas sem entradas. Os sapatos serão alinhados com um rigor de funcionário público e as gravatas penduradas com o cuidado com que tratará as matérias oficiais. No Sr. Costa não há espaço para o desleixo, porque também não o consente na sua repartição. A casa será pequena – duas assoalhadas apenas – mas tudo se organiza com zelo, inclusivamente o que parece supérfluo. O que existe guarda-se, porque à semelhança da parte profissional da sua existência, nunca se sabe se não será preciso.

O cliente entrou, e senti-lhe o impacto da minha cicatriz e da minha perna manca. A realidade, tal como dizia à Dra. Clara. Rodou muito os olhos pela entrada e adivinhei-lhe a sensação de desconforto entre a perfeição da recepção e a imperfeição da recepcionista. Como se fosse, no fundo, uma certidão que se passa fora de prazo, um documento validado com um selo branco falhado; uma desconformidade, uma fuga às normas instituídas com precisão, um impacto desconhecido na estabilidade fiscal do Estado.

Sugeri à Dra. Clara a operária (não estamos na Fábrica da Ilusão?) que poderia acompanhar este diligente funcionário público, viúvo e sem filhos, envergonhado, porque aqui não lida com o que é obrigatório para o contribuinte, área onde se agita com segurança discreta. O Sr. Costa não gostará de se evidenciar e terá alcançado cargos de chefia devido a uma antiguidade comprovável por documentos.

Aconselhei a Rosário, uma estudante carinhosa de Psicologia com um passado relativamente recente de voluntariado num lar da 3ª idade. Pareceu-me a pessoa indicada para conferir segurança ao cliente, levá-lo a uma desinibição gradual mas certa, induzir-lhe sensações de conforto e de companhia que o façam regressar, como quem retorna a uma pastelaria onde os croissants e o serviço são particularmente agradáveis. A Rosário é uma rapariga de altura média, com uns olhos muito escuros e um tom de voz suave, quente, envolvente e tranquilizador que saberá cativar um cliente com este perfil.

Pelo que soube, o Sr. Roberto Costa arrumou a roupa com um cuidado quase maternal, dobrando as calças pelo vinco, a camisa e o casaco nas costas da cadeira, a gravata do lado esquerdo tapando com precisão o bolso de cima onde guarda sempre o passe social. Escondeu umas meias claras dentro de uns sapatos arrumados com uma precisão milimétrica, e deu um jeito ao cabelo onde se evidenciam entradas crescentes. Cumpriu estas rotinas, que se presumem iguais às que tem em casa, com esmero e silêncio, balbuciando frases simpáticas por trás de um sorriso acanhado.

A surpresa, diga-se honestamente, parece ter ocorrido ao som dos primeiros afagos, quando se quebra o gelo que abrirá portas à volúpia. A nudez da Rosário, o seu tom convidativo, a gentileza das mãos que trabalham e do corpo que se oferece, juntamente, quem sabe, com algo esmagado e retraído dentro do funcionário público, terão desencadeado um vulcão de atitudes. O Sr. Costa tornou-se um caso de autoridade, líder daquela dança sexual, tomando iniciativas, exigindo e determinando comportamentos, definindo tempos, impondo padrões de desempenho ao nível das multinacionais mais ferozes. Foi sempre correcto, porém exigente; educado, porém determinado. Não houve espaço para o desperdício, para a improdutividade, para os tempos mortos. Havia uma verba e um tempo a gerir. À Rosaria exigia-se, como fornecedora de serviços, a total satisfação do cliente.

Findo o tempo previsto, o Sr. Costa voltou a vestir-se com a meticulosidade já evidenciada. Tudo se fez com uma coreografia perfeita assente na repetição, mais do que no ensaio. Quando passou na recepção para efectuar o pagamento, o Chefe da Repartição de Finanças atentou, mais uma vez, no contraste perfeição da recepção versus imperfeição da recepcionista. Voltou a ser o mesmo viúvo tímido, com um fato em estado impecável comprado numa perspectiva de poupança, e umas calças vincadas com desvelo de homem solitário. Pediu uma factura, nem sequer na ilusão de que lha passaríamos, mas porque era o cumprimento de um hábito responsável. Despediu-se, discreto e educado. Os olhos negros da Rosário e a cicatriz do meu olho juntaram-se-lhe na mente, como duas correntes de temperatura diferentes que desaguam no mesmo ponto.

Sou a realidade, Dra. Clara…

Cumpriu-se mais um dia.

MTS

1 comentário:

Anónimo disse...

Podia ter caído um arranha-céus ou deflagrado um sismo, e nem assim me demoveriam de defronte deste écran, enquanto não lesse a última palavra do post de hoje.
Cumpriu-se mais um capítulo :-)

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