14 agosto 2009

domingo à tarde

ao domingo à tarde,
saímos de casa.
gola semi-arrebitada,
que pintarola,
apanhor sol de outono
na magistral e douta tola.

que linguagem, menino,
onde ficaram seus modos?
deixei-os em coimbra,
entre outros destroços.

ao domingo à tarde,
como no livro do fernando,
- o fernando namora -,
saímos de casa,vamos à bola,
qu'arejar é preciso
diz aqui o artola.

menino, menino,
heresias em dia santo?
a vida corre-lhe mal,
mas é razão para tanto?

ao domingo à tarde,
que se lixe o escritor,
passeamos pela cidade,
à falta de melhor,
(ia escrever: de calor).

menino, menino,
mas não fazia sol soalheiro?
o menino procura coisas
como agulha no palheiro.
não lhe basta o solzinho,
queria por acaso milagre maior?
diga lá: que acabasse a fome?,
diga cá: encontrar o amor?

menino, menino,
onde ficou a educação, respeito, etc e tal?
dizer assim mal do país,
dizer mal de portugal?

ao domingo à tarde,
ensandecidos da semana,
que cansaço, que torpor,
esquecemos qu'em nós manda:
a nossa algibeira
(mai-la do senhor doutor).

menino, menino,
que poeta tão limitado,
erra na métrica e no verso,
faz impressão,
ainda morre de fome,
tenha cuidado.

Deus-lhe pague o aviso,
e do chão erga o mendigo
que qual Cristo ajoelhado
pedia a quem passava:
- tenho fome, piedade.
essa agora, mendigo do diabo,
estragas assim o domingo,
pensas qu'isto é o quê?!
(apenas mais um domingo na cidade,
bem se vê..)

menino, menino,
que mal disposto anda,
homem feito por fora,
mas vê-se à légua a criança.
herança de livros e discos,
de mãe e pai e tudo,
feche-se em casa ao domingo,
saia só no entrudo.
que isto de aturar humores
de poetas mal arrimados
é dos piores terrores
alguma vez inventados.
claro que falo de mim,
acredite se quiser,
olho-o, faz-me pena,
lembra-me a minha mulher.
coisa assim nunca vi,
essa incapacidade de ser forte,
tome juízo, menino,
apanhe de vez o norte.

ao domingo à tarde,
petece morrer.
ou então espantar a dor,
no corpo de uma mulher.
se é isto o domingo,
dia santo de guarda,
ou perdemos toda a fé
ou a gente anda parva.
shopping mall e internet
passeios e futebol
eis a nossa condição:
trocar a vida por nada
e agradecer com devoção.

menino, menino,
insiste na diabrura?
olhe que gente que pensa e sofre e sente
lugar já aqui não tem,
moram todos no cemitério

ou no coração de sua mãe.

gi

2 comentários:

maf_de_ferias disse...

Hoje é domingo à tarde e este poema veio mesmo a calhar, apesar de publicado numa 6ª.feira. Fico maravilhada com os seus poemas, gi. Entendo-o melhor na poesia que na prosa :-) A sua poesia vem-lhe do coração, da alma.... Sem métrica? que importa isso! O conteúdo é cheio de sentimento, parece feito de pedaços de si. Continue a brindar-nos com os seus poemas. Bem haja e bom domingo.

Anónimo disse...

Olá, Maf_de_Férias.
Fico muito sensibilizado pelas suas palavras. Sabe, há quem goste mais da minha prosa que é quase poesia (e que escrevia amiúde no Flores de Inverno, agora em repouso forçado, digamos assim). Como há quem goste mais, muito mais, destes meus arremedos vagamente poéticos. Num caso como noutro, tem inteira razão: eles são pedaços de mim, escritos sob a forma de "corrente de consciência" - escrita torrencial e sem mediação, sem procura da exactidão formal. São golfadas, golpes, incêndios, inundações - sangue e vida que correm para o mar. O mar que procuro. O mar que me faz aguentar, de pé, as longas noites de Inverno e os áridos e intermináveis dias deste Verão que bem dispensava.
Boas férias. Uma vez mais, muito obrigado pelas mui gentis palavras.

flores,

gi.

Acerca de mim

Arquivo do blogue