Eis aí uma maneira de perpetuar as ideias de um homem que eu afoitamente aprovo - publicar-lhe a correspondência! Há desde logo esta imensa vantagem: - que o valor das ideias (e portanto a escolha das que devem ficar) não é decidido por aquele que as concebeu, mas por um grupo de amigos e de críticos, tanto mais livres e mais exigentes no seu julgamento quanto estão julgando um morto que só desejam mostrar ao mundo pelos seus lados superiores e luminosos. Além disso uma Correspondência revela melhor que uma obra a individualidade, o homem; e isto é inestimável para aqueles que na Terra valeram mais pelo carácter do que pelo talento. Acresce ainda que, se uma obra nem sempre aumenta o pecúlio do saber humano, uma Correspondência, reproduzindo necessariamente os costumes, os modos de sentir, os gostos, o pensar contemporâneo e o ambiente, enriquece sempre o tesouro da documentação histórica. Temos depois que as cartas de um homem, sendo o produto quente e vibrante da sua vida, contém mais ensino que a sua filosofia - que é apenas a criação impessoal do seu espírito. Uma filosofia oferece meramente uma conjectura mais, que se vai juntar ao imenso montão das conjecturas: uma vida que se confessa constitui o estudo duma realidade humana, que, posta ao lado de outros estudos, alarga o nosso conhecimento do Homem, único objecto acessível ao esforço intelectual. E finalmente como cartas são palestras escritas (assim afirma não sei que clássico), elas dispensam o revestimento sacramental de tal prosa como não há...
Eça de Queirós, in 'A Correspondência de Fradique Mendes'
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