28 setembro 2009

O homem do talho

- Dá-me 1 kg de bifes, Sr. Josué? Mas importa-se de os cortar fininhos? E de me tirar a gordura antes de pesar?

- E quer que eu lhes faça uma massagem também? Ou uma lipoaspiração? Se quer fininho fale com o Rui Veloso, que essa música era dele.

Ou então:

- A carne é boa, Sr. Josué? Queria uma peça macia mas barata, que o tempo não está para mais.

- Ah sim? E mais alguma coisa? Um bilhete premiado, talvez? Mas que eu lhe oferecesse, é claro, que o tempo não está para mais…

Os diálogos como o dono do talho não variam muito. Pedidos simples respondidos com frases agrestes, simpatias matinais retorquidas com azedumes permanentes. Ao Sr. Josué vale-lhe a qualidade da carne, além de não haver alternativa num raio de quilómetros. A freguesia no talho não diminui, só diminui a esperança de que o feitio do talhante melhore. Os dias passam e nada acontece, para além da carestia da vida, das pensões de miséria, do preço dos medicamentos, do desrespeito das gerações mais novas. No Sr. Josué, tal como na Nação, já muitos descrêem uma mudança.

Duas vezes por mês, às 4ªs feiras, o talhante despede-se da mulher com dois beijos rotineiros e um até logo indiferente. D. Lucília, sentada num sofá a descascar favas e a ver a novela do fim de tarde, repete-lhe a pergunta quinzenal com o interesse das coisas vagas:

- Vais jogar sueca?

- Sim, vou.

Por volta das onze da noite o Sr. Josué, comerciante agreste que tem do serviço ao cliente uma visão muito própria, entra em casa e saúda a mulher com outros dois beijos curtos, com uma intensidade e afecto só muito ligeiramente diferentes. As favas estão descascadas mas a saga da novela continua – outros personagens, outros cenários, outro enredo.

- Ganhaste?

O talhante não devolve o olhar porque D. Lucília não olha para ele, que o seu interesse está em saber se a outra do conde ascenderá a esposa legítima. O olhar do talhante atravessa paredes e pessoas e pára num ponto no infinito que só ele vê. Há uma hora, um local, um personagem e uma actividade que definem as coisas da vida de cada um, mesmo se resguardadas de olhares terceiros: entre as seis da tarde e as dez da noite, às 4ªs feiras e duas vezes por mês, o industrial das carnes cortadas a jeito, um lar de idosos perdido nos arrabaldes da sua freguesia. Ali, na miséria da terceira idade abandonada à sua sorte, há velhos a precisarem de banho, de uma muda de fraldas, de casas de banho lavadas, de camas mudadas, de sopas ralas dadas em bocas sem dentes.

- Ganhaste?, repete a esposa do Senhor Josué, esperançada na ascensão da amante a condessa com palácio e gelo permanente no balde.

Dos olhos do homem que retira a gordura antes de pesar os bifes rolam duas lágrimas grossas, pesadas, cheias de sentimentos contraditórios.

- Talvez mais do que mereça…

Conheço-o bem. No fundo, no fundo, somos todos do mesmo bairro.

JdB

Nota: texto publicado Sábado no Porta do Vento

2 comentários:

arit netoj disse...

Gosto muito destas suas crónicas, este talhante misterioso - um sensível mascarado - tocou-me especialmente.
Beijinhos e parabéns.

DaLheGas disse...

ganda text :)))

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