18 setembro 2009

na islândia

a vidraça é por vezes um recurso inestimável
espécie de filtro translúcido entre nós e o universo,
como essa porta de restaurante moderno
que hoje te separa da pequena multidão lá fora.

a mistura de negro e vermelho é perigosa,
como todos sabemos bem dos livros de história
e de outras coisas que rimam com a memória
do que já fomos, do que somos e sempre seremos.

mais uma manifestação burocrática, parece-te,
'já nem dá para um entusiamo à antiga sequer,
este sindicalismo on demand', diz a teu lado a mulher
e tudo revela a essência burocrática deste tempo.

dizem-te: desempregados de espadas desembainhadas?
é coisa muito pouco vista, mesmo nada habitual,
pois o país que sobrevive já não passa no telejornal
e estes desempregados são, já se vê, gente de bem.

engoles a sopa de grão, que não te cai como devia,
e perguntas-te se será desse moderno cozinhado,
embora sabendo que a razão não está no refogado,
antes na secreta arte de manipular a algibeira alheia.

tudo se compra, tudo se vende, tudo se corrompe,
verso bem a calhar, já que te acusam de nihilista-mor.
encolhes os ombros, bebericas o café sem sabor,
serei nihilista-mor ou só lúcido? (dandy era melhor).

dormes, na rotina dos justos que navegam à vista,
marinheiros de água doce e mares sem chama,
que isto de viver enquanto se refila e se reclama,
é como reconstruir um avião em pleno vôo sónico.

a rádio fala da crise, esse animal de desestimação.
de súbito, entra-te no carro esse país (existe?) branco
a que muitos chamam islândia - ilha de fogo, portanto -
onde o impensável afinal também parece acontecer.

as pessoas revoltam-se, há pedras a voar pelos ares,
e não, não é nenhum secreto ritual, nenhuma celebração
bizarra e ancestral, é mesmo, como dizer, a manifestação
pura e dura de um mal geral: como viver sem se poder?

direitos adquiridos, o welfare state, o milagre económico,
expressões de um presente garantido, de conforto, etc. e tal,
transformam-se em palavras bolorentas, mera poeira astral.
não pagam contas de anteontem, nem são passaporte feliz.

"então isto é assim".., deve pensar aquela gente por lá,
as regras mudam em pleno jogo, "passar bem e viver mal"..
"não esperam pela demora, estes fregueses em especial",
que "a impunidade não passará!", "abaixo o governo! "..(é cá?)

retomas o teu pensamento, são exactamente 9h05,
numa cidade conhecida e tua, bem longe da islândia.
abençoado és, rapaz, por essa geográfica circunstância.
aceleras o carro, outra mudança - que bom é viver em paz.

lá longe.. mas que te interessa esse lugar abstracto?
no futuro.. mas que te interessa esse tempo por acontecer?
mas e "se lá longe e no futuro" for "o aqui e agora"? - queres tu ver..
aceleras mais, mudança engrenada, pedal a fundo.

uma lágrima contida, quase ensimesmada,
contra um muro concreto, ali logo à frente,
procuras o travão ontologicamente ausente,
enquanto te despistas - tu e a branda islândia.

nuvens de chumbo, prédios a arder,
um travo amargo, uma visão alucinada.
depois uma dor insana, vertical, funda,
depois o muro

e depois nada.

gi

4 comentários:

Anónimo disse...

Que interessante sequência! Dura e sofrida também! Nem sempre fácil de seguir (por incapacidade minha, claro está). Quando leio o que você escreve, acho sempre que você pertence a um "campeonato" diferente. Ele há a 1ª Liga, a Liga dos Campeões, a Liga da Europa, o Campeonato Mundial ... tal como há Ferraris, BMW's, Audi's, Puntos, Hondas, Nano's ...
pcp

Anónimo disse...

pois sim. reserve para mim, por obséquio, um lugar de jogador de futebol num clubezinho da 3-ª divisão. um habilidoso que dava uns toques e prometeu muito, em tempos. hoje, joga por recreação. por saudade. e porque assim, enquanto joga, sempre escapa um bocadinho às dores e ao tédio da vida civil.
sabe, pcp, o mais difícil é ousar a simplicidade. por isso, reserve para mim um metafórico nano.. e não se fala mais nisso.

flores gentis,

gi.

Anónimo disse...

então ouse fugir à vida civil... parta para outras paragens, ouse o que nunca ousou ... assim acaba-se o tédio ... vêm os problemas de percurso, mas garanto-lhe que o tédio desaparece... pcp

Anónimo disse...

um sábio, porém exigente, conselho..
nem todos têm o dom da coragem.

mais umas flores gratas,

gi.

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