Não serei um melómano, nem me revejo na singeleza adolescente de uma amiga que suspirava de olhos em alvo: não sei viver sem música. De facto, ar e víveres desempenham um papel mais imprescindível. Tenho uma relação específica e pessoal com vários tipos musicais, que partilharei - talvez para horror de quem me lê.
Desde sempre que gosto fado - até por questões familiares - mas sou um fã tardio da Amália, com quem aprendi a tomar muita atenção às letras. Oiço fado, independentemente do meu estado de espírito. Não consigo ouvir enquanto leio porque, muito embora tenha dois hemisférios cerebrais, ambos juntos já não perfazem uma totalidade. Atentar simultaneamente nuns versos que oiço e numa história que leio é tarefa hercúlea para uma mente que atrofia sem retorno.
Se me falam em música mundial olho de imediato para a América do Sul, exibindo o mesmo enlevo babado com que, vítima de uma quebrazita de açúcar, olharia para um mil-folhas. Dêem-me tangos, boleros, milongas, colectâneas de Carlos Gardel ou Lucho Gatica e a minha alma suspira, exalando um sopro agradecido a quem ofereceu estes vultos à humanidade. A explicação para esta bizarria? Não tenho... Quantas pessoas somos dentro de nós?
Tenho um lado kitsch - talvez mesmo possidónio. Adoro as chamadas melodias de sempre, a época de ouro da música portuguesa. Noutro âmbito, quiçá, ouvir o nome Tony de Matos provoca-me um frémito de emoção que as classes superiores olhariam com um misto de nojo e desprezo - nunca curiosidade. Entre o artista que imortalizou o Vendaval e um bom prato de favas mon coeur balance.
A música clássica revela, talvez, uma parte importante de mim - a gravidade, o peso, o não horror às coisas tristes. Poderia facilmente (talvez apenas ingenuamente) defender a existência de Deus pela sublimidade de alguns trechos musicais, alegando a quase impossibilidade de terem sido compostos sem uma intervenção divina. Ouvir Bach, por exemplo, é um exercício de elevação, de sensibilidade, de fé em algo muito superior a nós. A música clássica, em particular a coral sinfónica (religiosa, sobretudo) inspira-me para aquilo que eu gostaria de fazer mais e melhor: escrever.
Oiço a chamada música pop, não porque goste muito, mas porque ela me dá referências temporais relativamente à minha vida pessoal - e eu sou um nostálgico. Há músicas que me fazem lembrar as férias algarvias; outras recordam-me raparigas com quem dancei num assomo de sensualidade, encostando uma face imberbe a um cabelo perfumado de champô floral; outras ainda trazem-me à memória um tempo despreocupado durante o qual travei amizades, algumas das quais se mantêm há mais de trinta anos. A romagem de saudade de hoje é a essa fase.
JdB
5 comentários:
"... inspira-me para aquilo que gostaria de fazer mais e melhor: escrever". Gostava bem que isso um dia acontecesse. Porque você escreve maravilhosamente e, sobretudo, duma forma diferente. Elegante, literária, cheia de sensibilidade, delicadeza e humor subtilíssimo. Gostava imenso de ir um dia ao lançamento de um livro, no Grémio Literário, do JdB. Já me estou a ver em fila indiana com um livro na mão, à espera do meu autógrafo... bjs. pcp
Por momentos temi o pior!
Uma remix de gardel/Tony em versão cravo, cantado pelo coro da Igreja de Santos.
Confesso que prefiro favas, mas a sua leveza e sensibilidade fizeram com que sobrevoasse a juventude, ouvindo e gostando, apenas, da versão mais light da música rebelde.
Gosto muito de o ler. É doce, sabe! Faz-nos sentir bem.
Também eu gostei muito da escrita. E ficou-me a apetecer mais. Quanto ao Frampton a cantiga é de facto uma referência incontornável. Mas repararam no visual? Com um corte de cabelo, um bigode e pêlos no peito ficava igual ao Zézé Camarinha.
Também eu gostei muito da escrita. E ficou-me a apetecer mais. Quanto ao Frampton a cantiga é de facto uma referência incontornável. Mas repararam no visual? Com um corte de cabelo, um bigode e pêlos no peito ficava igual ao Zézé Camarinha.
Pode-se dizer que tens um gosto musical deveras "abrangente"!
Não acompanho todas as escolhas, mas a maior parte delas certamente...
Sempre gostei de PF, e desta música em particular.
Abraço,
fq
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