Sai-se revigorado do filme francês «AS NEVES DO KILIMANJARO»(1). Equivale a uma ida ao (ou vinda do) SPA. O título
recupera uma versão antiga, com Ava Gardner(2), de 1952, embora só lhe aproveite a imagem de marca e a
música. É um facto que a história inclui um projecto de ida ao Quénia, pelo que
o nome da película faz todo o sentido. Os felizes contemplados são um casal a
comemorar 30 anos de casados – Michel e Marie Claire – um feito nos dias que
correm, sobretudo por sintonizarem maravilhosamente.
O cenário, as figuras e a base da
narrativa parecem banais, situados numa França industrializada, onde o
operariado desfruta de um nível de vida folgado, perfeitos burgueses num país
rico do hemisfério Norte. São pequenos desvios na trama, que vão tornando
especial e única a mais prosaica das existências.
O argumento inspira-se no poema magistral de
Victor Hugo (1802-1885), «Pobres» (Les
Pauvres Gens(3)), mais conhecido pelo famoso romance «Les Misérables», celebrizado nos
anos 80 através do grande musical da Broadway: Les Mis. Também no filme, à
maneira de Victor Hugo, somos introduzidos nos meandros do sub-mundo dos
desfavorecidos, quase sempre marginais agressivos. Os mais frágeis dos pobres são
os preferidos pelo genial escritor francês, do tempo da Revolução Industrial,
que tinha uma notável consciência social mas abominava a luta de classes e os
confrontos sociológicos preconizados pelo comunismo emergente.
O realizador gaulês parte da condição
de um líder sindicalista (o Michel) ainda cheio de ideal, apesar da idade
avançada. Praticamente não se deixara acomodar, depois de todas as vitórias laborais
somadas ao longo dos anos. Um puro que, um dia, teve a ousadia de se colocar na
situação dos trabalhadores a termo, verdadeiros párias do mercado de trabalho.
Quis partilhar a extrema vulnerabilidade deles. E as sortes permitiram-lhe, atirando-o de imediato para
o desemprego – é a primeira surpresa.
Das fortes.
Os colegas
olham-no estupefactos e incrédulos, com a noção de que as sortes poderiam
tornar tudo irremediável…
A segunda surpresa é a reacção
incrivelmente mansa e compreensiva da mulher, confiante nas opções do marido,
incluindo as mais imprudentes, para muitos – irresponsáveis! A espantosa ternura
entre ambos, fruto de um longo crescimento em conjunto, está na base do bom
entendimento do casal. Entre os dois, os silêncios cúmplices ainda flúem melhor
do que as palavras trocadas.
A terceira surpresa está na vida de
família alegre, simples e intensa, conseguindo ser aquele espaço alargado de
companheirismo e ânimo de vida, onde os amigos gostam de se vir acolher. Lembra
as árvores ancestrais dos jardins antigos, de copa generosa, onde todas as aves
das redondezas encontram lugar. Ali reina sempre um festim de chilreios e
animada confusão.
Na sequência do festim da família vem
um presente extraordinário, resultado da colecta dos muitos amigos do casal. O
pico do Kilimanjaro entra, então, no horizonte!
A acção, até aqui pautada por uma
afectividade rica e descontraída, acessível a todos, baseando-se no gozo dos
pequenos bons momentos do dia-a-dia, sofre um revés grotesco, com um assalto
violento. Aqui introduz-se uma nota de mal, típica da actualidade (sub)urbana,
com todos os ingredientes a que já estamos, infelizmente, q.b. habituados. E logo
é a viagem espectacular o principal móbil do crime! Quem diria que um bem dá tanto
pretexto ao mal.
A quarta surpresa, ao estilo de
Victor Hugo, faz desviar a câmara para o assaltante, revelando-nos o rosto
humano e dorido do encapuçado, que tínhamos detestado segundos antes… Esta
capacidade de nos aproximar de perspectivas e experiências de vida que nos são
estranhas e nada atractivas (ou sequer recomendáveis), reevoca a história do
pescador do século XIX, contada no poema LES
PAUVRES GENS, cujo desfecho o realizador do século XXI transpõe directamente
para o filme.
Essa quarta surpresa abre uma caixa
de pandora, reveladora da realidade do assaltante. Segue-se uma catadupa de
novos acontecimentos, a começar por uma nova agressão, mais insidiosa,
precisamente ao sindicalista puro e magnânimo, que considerara ter tido uma
atitude bem solidária com os colegas de trabalho mais pobres, ao arriscar o
desemprego. Só que os mais pobres não lhe agradecem, pois nem reconhecem o
mérito do gesto! Antes atacam-no, acusando-o de má estratégia laboral, além de
se indignarem com a enorme desigualdade entre uns e outros, apesar de
partilharem a mesma condição de desempregados. A agressão moral e intelectual desferiu
um golpe mais feroz que a do assalto, desestabilizando totalmente o manso
Michel. Foi o descontrole do marido (e não o ficar sem emprego) que Marie
Claire teve dificuldade em acatar, pois não se quadrava com o seu sentido de
lealdade e grandeza humana, onde não há lugar para os ataques de fúria de quem
está por cima – puras usurpações de
poder (à escala de cada um).
A raiva perante a segunda acusação acabou
por evoluir para a compaixão perante a óbvia dureza de vida do ladrão
insolente, com dois irmãos menores a seu cargo. Marido e mulher, que somavam 30
anos de óptima cumplicidade, experimentam uma nova sintonia, algo imprevista, onde
se apanham a olhar a dificuldade alheia, exactamente do mesmo modo, apesar
de ser uma bizarria para as outras
pessoas. Percebe-se que o diagnóstico semelhante encaminha-os também para uma
solução igual, ancorados na mesma humanidade, tão generosa, que os faria
sentirem-se paupérrimos se não a pudessem partilhar com os marginalizados.
Sobretudo menores e inocentes. Essa era a sua profunda consciência social – a
mais rara, útil e muito acima de qualquer ideologia.
A viagem de sonho às neves eternas do
Kilimanjaro fizeram-nos ascender a maiores alturas – àquelas que dão a estatura
do ser humano, como afirma Pessoa (pelo seu heterónimo, Alberto Caeiro): «Porque eu
sou do tamanho daquilo que vejo / E não do tamanho da minha altura.». Num
jogo de teenagers, o velho casal diverte-se a imaginar os animais selvagens que
encontrariam nos safaris do Quénia, sugeridos pelos diversos banhistas que
observam na praia. A nova opção de vida, sempre a dois e sempre aberta aos
demais, fizeram-nos preferir outras paragens, menos exóticas, mas não menos
emocionantes.
Interessante o choque de gerações ao
longo do filme, no sentido inverso ao comum, com os mais seniores a ganharem
aos pontos… no diálogo com os filhos, na resposta final ao jovem assaltante.
Interessante o sentido de universalismo
da sociedade, próximo de Victor Hugo (nada adepto da diferenciação por classes),
em que de todas as janelas se vislumbra a azáfama de guindastes, no porto de
Marselha. O realizador explica como a vista de todas as casas é igual – seja
nos condomínios de luxo, seja nos bairros sociais -- numa metáfora que exalta os valores comuns a qualquer
ser humano.
Interessante registar o efeito de
choque que as decisões mais generosas provocam em redor. Essas sim, verdadeiras
revoluções, nem sempre bem quistas, sobretudo – ironia das ironias – pelos mais
novos!
Interessante ainda o ânimo
inquebrantável de Marie-Claire, que prescindira de ser enfermeira, por dar
prioridade à família. Tem a arte de se divertir sobriamente com as realidades comezinhas,
na esplanada frequentada por miúdos da idade dos filhos, a saborear uma bebida
apetitosa que o barman-“psicólogo” recomendou para a situação dela. Com humor, pediu logo dose dupla, porque a sua vida
merecia-o! Nem hesita em trocar as patuscadas
com as amigas, pelo apoio a crianças desamparadas, mantendo a boa
disposição de quem vem das patuscadas.
O gosto pelas pequenas coisas é
uma escolha assumida pelo realizador: «Adoro infinitamente as coisas banais que acontecem na vida todos os dias:
café, recados, discussões… No cinema são os pequenos detalhes do quotidiano
que, colocados na narrativa, acrescentam camadas e profundidade. (…) E filmo-as
(…) de forma muito simples, para não contar nem mais nem menos do que elas são,
sem qualquer sofisticação em particular: como a própria vida!»
Interessante história que, ao lembrar
les pauvres gens com o olhar de quem
os reconhece feitos da mesma massa que todos os outros, nos desafia a repensar
na vida e nos outros. O tempo de férias vem a calhar.
Maria Zarco
(a
preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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Título original:
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LES NEIGES DU
KILIMANDJARO
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Título traduzido em Portugal:
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AS NEVES DO
KILIMANDJARO
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Realização:
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Robert Guédiguian
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Argumento:
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Robert Guédiguian e Malek Hamzaoui
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Produzido
por:
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Robert Guédiguian, Jean-Louis Milesi
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Fotografia:
|
Pierre Milon
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Banda Sonora:
|
Pascal Mayer
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Duração:
|
107 min.
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Ano:
|
2011
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País:
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França
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Elenco:
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Ariane Ascaride (mulher do casal, Marie-Claire)
Jean-Pierre Darroussin
(o marido, Michel)
Gérard Meylan (cunhado
de Michel, também sindicalista)
Marlyne Canto (irmã
de Marie-Claire)
Christophe (assaltante)
Ana*is Demoustier (filha, Flo)
Adrien Jovilet
(filho, Gilles)
etc.
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Local das filmagens:
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França
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Site oficial:
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http://diaphana.fr/film/les-neiges-du-kilimandjaro
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Pálmarés e distinções
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Prémio Lux do Parlamento Europeu
Selecção Oficial no Festival de Cannes
Prémios
do Melhor Filme e do Público no Festival de Valladolid.
(2)
Película
norte-americana com grandes actores:
(3) Link
para aceder ao poema na língua original: http://poesie.webnet.fr/lesgrandsclassiques/poemes/victor_hugo/les_pauvres_gens.html
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