24 setembro 2012

Vai um gin do Peter’s?

Perante um conflito tão feroz, como o que opõe Israel à Palestina, é difícil de conceber que a arte possa ter um papel conciliador. Fará sentido acreditar que o som de uma peça musical pode abafar o estrondo destrutivo das bombas? Haverá linguagens, vias de comunicação capazes de se sobrepor à força das armas? Mais concretamente, será possível substituir G3 por violinos? 

Um maestro-pianista judeu, de origem argentina, e um académico palestiniano acreditaram que sim e fundaram, em 1999, uma orquestra israelo-palestiniana, para proporcionar às novas gerações um elo de ligação poderoso, favorecendo a cooperação e até a amizade entre os dois lados da trincheira de guerra. A West-Eastern Divan Orchestra(1) nasceu assim do sonho louco de Daniel Barenboim (1942) e de Edward Said (1935-2003, nado e criado em Jerusalém, 17 anos antes da criação do Estado de Israel), com o apoio do alemão Bernd Kauffmann, responsável pelo Festival das Artes de Weimar, em 1999.

O nome da Orquestra replica o título da antologia poética de Goethe, que reúne a tradição literária árabe e a europeia. Note-se que o poeta alemão começou a estudar a língua árabe, aos 60 anos, para poder explorar a grandeza daquele património cultural.

«(A música) não pode resolver problemas, mas pode ensinar-nos a pensar de um modo que é uma escola para a vida.» – declarou o maestro, a exaltar o alcance inimaginável da expressão de arte onde é mestre. Na sua carreira fulgurante, Barenboim conta com muita solidariedade em favor da Palestina e de Israel, em parceria com o grande pensador palestiniano Said, onde se destaca a edificação de um jardim-escola em Ramallah. 

É também significativo que o ponto alto da carreira de Barenboim se situe, precisamente, no coração da Alemanha (local de residência, desde 1992), onde é o Maestro Principal e vitalício na Staatskapelle Berlin. A sua vida, tão generosa, é a prova viva da sua capacidade de semear a paz entre antigos (e actuais) inimigos, fazendo jus ao dito: «Uma alma que se eleva, eleva o mundo inteiro» (de Elisabeth Leseur(2) – intelectual francesa do séc. XIX, da alta sociedade parisiense). 


O pouco tempo de vida da W-E. Divan Orchestra já soma ao êxito musical, com actuações nos palcos melómanos da Europa, entre a Alemanha, a Áustria e Londres, o mérito de aproximar um pouco povos desavindos, conforme desejaram os fundadores: «Gostaria de os ver (os jovens músicos) como pioneiros de uma nova forma de pensar no Médio Oriente.» (Barenboim).

Em 2005, foi o tema de um documentário – «Knowledge is the Beginning» – realizado por Paul Smaczny e premiado com um Emmy do Melhor Documentário sobre Arte (2006). Este ano, a Orquestra recebeu mais um prémio internacional, desta vez atribuído pela Fundação Calouste Gulbenkian, com uma verba avultada para ajudar a manter um sonho aparentemente utópico. Felizmente que, às vezes, a realidade insiste em superar a ficção.

Também, em sentido inverso, há momentos negros na história da arte, obscurecidos por colagens ideológicas impróprias, que estigmatizaram os artistas, quase nunca isentos de responsabilidade... Assim aconteceu com vários germânicos ligados ao regime nazi, sendo os mais lendários Leni Riefenstahl (1902-2003) e Herbert von Karajan (1908-1989, austríaco como Hitler). Do maestro ficaram inúmeros episódios contraditórios, como o que deu pretexto ao episódio aludido (sem nomes) no filme francês de 1981 – «Les Uns et les Autres» – onde um jovem músico é convidado a actuar num concerto memorável do pós-guerra, creio que no Met de Nova Iorque, completamente esgotado. Qual não foi a sua consternação, quando subiu ao palco e se viu sem público. Perante uma orquestra hesitante e desmotivada, Karajan levantou a batuta e executou o programa que estava anunciado. Soube depois que os judeus da Big Apple tinham comprado os bilhetes para lhe infligir aquela humilhação, a que o maestro replicou com o brio e a combatividade possíveis. Depois deste incidente, a sua carreira continuou sem mais percalços, à parte de lhe atribuírem um estilo férreo, autoritário e machista. No seu corpo de músicos, só se lhe conhece uma excepção feminina (e já no final de vida) – a talentosa violinista alemã, Anne-Sophie Mutter. É dele a citação irónica: «Those who have achieved all their aims probably set them too low

Baseada no impacto positivo que a arte pode ter na sociedade (na política e até no poder) e, sobretudo, no coração das pessoas operando verdadeiras revoluções, a iniciativa visionária de Barenboim e Said é das réplicas mais benignas da criatividade humana em favor da paz: 



Esperando que um som alcançado na reconciliação de pólos opostos contagie e reverbere nos ouvintes, inspirando-lhes a mesma atitude de abertura aos mais distantes, vale a pena assistirmos aos concertos da W.-E Divan Orchestra, em especial à Nona de Beethoven, consagrada à Alegria e excelentemente executada na Staatsoper de Berlim:



Maria Zarco

(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
____________


(2)  O seu pensamento só foi conhecido e publicado após a sua morte, pelo marido, que ficou tão impressionado perante a riqueza espiritual da mulher, que se transformou de ateu militante em frade dominicano. É de Elisabeth Leseur a frase: «Meditar é bom; rezar é melhor; amar é tudo».

2 comentários:

Anónimo disse...

Tenho um livro da Barenboim sobre o seu conceito de paz, através da música, no conflito Israel/Palestina. Chama-se "Está tudo Ligado". E está mesmo. Ou melhor, estamos todos ligados. Por isso é que os idealistas e os sonhadores - e é por aí que o mundo tem de avançar - repudiam veementemente as guerras, os conflitos, as lutas.... É preciso ser-se muito, muito primitivo do ponto de vista espiritual para se viver em luta. É que não faz sentido. Vivemos todos lado a lado, no mesmo planeta. Helas, ainda estamos muito longe desse ponto. Se é que alguma vez lá chegaremos. Enfim, é o meu ponto de vista (que vale o que vale). Bjs. pcp

Anónimo disse...

E vale imenso (creio) o teu ponto de vista. Pela minha parte, subscrevo-o inteiramente. É impressionante, e lindo, o que o Papa disse na viagem ao Líbano, sobre a Verdade que se atinge em conjunto com todos os homens, sem excluir ninguém. E insistia que ninguém se pode considerar "dono" da verdade. De facto, ninguém tem autoridade para se sobrepor ao outro, por nenhum meio, menos ainda pela força. Claro que não estamos a defender a anarquia. Enfim, isto dava pano para mangas... Bjs, MZ

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