Um maestro-pianista judeu, de origem argentina, e um académico palestiniano acreditaram que sim e fundaram, em 1999, uma orquestra israelo-palestiniana, para proporcionar às novas gerações um elo de ligação poderoso, favorecendo a cooperação e até a amizade entre os dois lados da trincheira de guerra. A West-Eastern Divan Orchestra(1) nasceu assim do sonho louco de Daniel Barenboim (1942) e de Edward Said (1935-2003, nado e criado em Jerusalém, 17 anos antes da criação do Estado de Israel), com o apoio do alemão Bernd Kauffmann, responsável pelo Festival das Artes de Weimar, em 1999.
O nome da Orquestra replica o título da antologia
poética de Goethe, que reúne a tradição literária árabe e a europeia. Note-se
que o poeta alemão começou a estudar a língua árabe, aos 60 anos, para poder
explorar a grandeza daquele património cultural.
«(A música) não pode resolver problemas, mas pode
ensinar-nos a pensar de um modo que é uma escola para a vida.» – declarou o
maestro, a exaltar o alcance inimaginável da expressão de arte onde é mestre.
Na sua carreira fulgurante, Barenboim conta com muita solidariedade em favor da
Palestina e de Israel, em parceria com o grande pensador palestiniano Said, onde
se destaca a edificação de um jardim-escola em Ramallah.
É também significativo
que o ponto alto da carreira de Barenboim se situe, precisamente, no coração da
Alemanha (local de residência, desde 1992), onde é o Maestro Principal e
vitalício na Staatskapelle Berlin. A sua vida, tão generosa, é a prova viva da sua
capacidade de semear a paz entre antigos (e actuais) inimigos, fazendo jus ao
dito: «Uma alma que se eleva, eleva o
mundo inteiro» (de Elisabeth Leseur(2) – intelectual francesa do séc. XIX, da alta
sociedade parisiense).
O pouco tempo de vida da
W-E. Divan Orchestra já soma ao êxito musical, com actuações nos palcos melómanos
da Europa, entre a Alemanha, a Áustria e Londres, o mérito de aproximar um
pouco povos desavindos, conforme desejaram os fundadores: «Gostaria de os ver (os jovens músicos) como pioneiros de uma nova forma de pensar no Médio Oriente.»
(Barenboim).
Em 2005, foi o tema de um
documentário – «Knowledge is the Beginning» – realizado por Paul Smaczny e
premiado com um Emmy do Melhor Documentário sobre Arte (2006). Este ano, a Orquestra
recebeu mais um prémio internacional, desta vez atribuído pela Fundação
Calouste Gulbenkian, com uma verba avultada para ajudar a manter um sonho aparentemente
utópico. Felizmente que, às vezes, a realidade insiste em superar a ficção.
Também, em sentido
inverso, há momentos negros na história da arte, obscurecidos por colagens
ideológicas impróprias, que estigmatizaram os artistas, quase nunca isentos de
responsabilidade... Assim aconteceu com vários germânicos ligados ao regime
nazi, sendo os mais lendários Leni Riefenstahl (1902-2003) e Herbert von
Karajan (1908-1989, austríaco como Hitler). Do maestro ficaram inúmeros
episódios contraditórios, como o que deu pretexto ao episódio aludido (sem
nomes) no filme francês de 1981 – «Les Uns et les Autres» – onde um jovem
músico é convidado a actuar num concerto memorável do pós-guerra, creio que no
Met de Nova Iorque, completamente esgotado. Qual não foi a sua consternação,
quando subiu ao palco e se viu sem público. Perante uma orquestra hesitante e
desmotivada, Karajan levantou a batuta e executou o programa que estava
anunciado. Soube depois que os judeus da Big Apple tinham comprado os bilhetes
para lhe infligir aquela humilhação, a que o maestro replicou com o brio e a
combatividade possíveis. Depois deste incidente, a sua carreira continuou sem
mais percalços, à parte de lhe atribuírem um estilo férreo, autoritário e machista.
No seu corpo de músicos, só se lhe conhece uma excepção feminina (e já no final
de vida) – a talentosa violinista alemã, Anne-Sophie Mutter. É dele a citação irónica: «Those who have
achieved all their aims probably set them too low.»
Baseada no impacto positivo que a arte pode ter na sociedade (na política e até no poder) e, sobretudo,
no coração das pessoas operando verdadeiras revoluções, a iniciativa visionária
de Barenboim e Said é das réplicas mais benignas da criatividade humana em
favor da paz:
Esperando que um som alcançado na reconciliação de pólos opostos contagie e reverbere nos ouvintes, inspirando-lhes a mesma atitude de abertura aos mais distantes, vale a pena assistirmos aos concertos da W.-E Divan Orchestra, em especial à Nona de Beethoven, consagrada à Alegria e excelentemente executada na Staatsoper de Berlim:
Maria Zarco
Esperando que um som alcançado na reconciliação de pólos opostos contagie e reverbere nos ouvintes, inspirando-lhes a mesma atitude de abertura aos mais distantes, vale a pena assistirmos aos concertos da W.-E Divan Orchestra, em especial à Nona de Beethoven, consagrada à Alegria e excelentemente executada na Staatsoper de Berlim:
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2
semanas)
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(2) O seu pensamento só foi conhecido e
publicado após a sua morte, pelo marido, que ficou tão impressionado perante a
riqueza espiritual da mulher, que se transformou de ateu militante em frade
dominicano. É de Elisabeth Leseur a frase: «Meditar é bom; rezar
é melhor; amar é tudo».
2 comentários:
Tenho um livro da Barenboim sobre o seu conceito de paz, através da música, no conflito Israel/Palestina. Chama-se "Está tudo Ligado". E está mesmo. Ou melhor, estamos todos ligados. Por isso é que os idealistas e os sonhadores - e é por aí que o mundo tem de avançar - repudiam veementemente as guerras, os conflitos, as lutas.... É preciso ser-se muito, muito primitivo do ponto de vista espiritual para se viver em luta. É que não faz sentido. Vivemos todos lado a lado, no mesmo planeta. Helas, ainda estamos muito longe desse ponto. Se é que alguma vez lá chegaremos. Enfim, é o meu ponto de vista (que vale o que vale). Bjs. pcp
E vale imenso (creio) o teu ponto de vista. Pela minha parte, subscrevo-o inteiramente. É impressionante, e lindo, o que o Papa disse na viagem ao Líbano, sobre a Verdade que se atinge em conjunto com todos os homens, sem excluir ninguém. E insistia que ninguém se pode considerar "dono" da verdade. De facto, ninguém tem autoridade para se sobrepor ao outro, por nenhum meio, menos ainda pela força. Claro que não estamos a defender a anarquia. Enfim, isto dava pano para mangas... Bjs, MZ
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