05 setembro 2013

Cartas dos dias que correm

Alcácer do Sal (fotografia de JMAC, o homem de Azeitão) 

(...)

Vinicius de Moraes, nas suas intermitências de garrafas de whiskey, terá afirmado naquele sotaque brasileiro que abre os braços, conquanto não se saiba se os fecha: "a gente não faz amigos, reconhece-os". 

Não se é verdadeiramente eficiente - passe a expressão de um modernismo demasiadamente evidente - se não abrirmos uma carta com uma citação. Ao contrário do que se pensa, a referência a pensamentos de outrem não é a evidência da ignorância própria, mas a persistência da memória selectiva.

Nenhuma amizade merece ser escrutinada à luz de um tempo presente, menos ainda de um tempo futuro. As relações de afecto que vamos entretecendo têm de ser vistas com um olhar firme e lúcido sobre o tempo passado. Um pouco como antigas civilizações -  e seguramente mais discernidas - que acreditavam que se avançava para a morte às arrecuas, com os olhos sempre postos na origem das coisas. É assim que devemos viver as amizades, sob pena de se substituir a leitura do que foi pela previsão do que será. Faltando-nos a divindade da profecia, ficar-nos-íamos pela menoridade da adivinhação.  

A análise das afeições em tempo real, observando um relógio que avança a ritmos certos, origina ideias de improbabilidade. No presente de hoje - e a redundância reforça o raciocínio - fulano e beltrano, diz-se, vivem amizades improváveis. Como o futuro não é mais do que uma sucessão que tende para infinito de momentos presentes, esta improbabilidade é iterativa. Ora, se o exercício for feito com os olhos postos num pretérito com perfeição humana, o mistério é desvendado com uma limpidez que envergonharia quem se dedica a essas artes. Olhar para trás, para quando tudo começou - seja um momento, seja uma série de momentos - é realizar que a origem é aquela e que o reconhecimento foi naquele preciso momento. Não é a vida que se encarrega de definir amizades para o ser humano. A vida é apenas um palco montado para uma encenação imaginada por Aquele de quem se disse não ter manhã nem tarde. Não construímos nada, porque tudo está coreografado. Resta-nos reconhecer, nos escombros ou nos alicerces onde nos movemos, os parceiros de jogo que o sorteio divino estabeleceu para cada um de nós.

Olhar para trás, num exercício de análise e não de futurologia, é perceber o encaixe das peças nesta organização que sempre nos surpreende. Olhar para trás é oferecer um sorriso ao enigma porque ele foi decifrado. Esse movimento de andar para onde tudo acontecerá, ainda que com os olhos no que já não se repete, é perceber que não há improbabilidades porque o mundo tende para a perfeição, apesar das leis da termodinâmica. Não fazemos, de facto, amigos. Reconhecemo-los no bruaá dos nossos percursos, identificamo-los porque sabemos - olhando retrospectivamente, que de outra forma seria impossível -, o que queríamos, quando queríamos, porque queríamos. E descobrimos o momento da revelação.

Não se pode dizer que a amizade de fulano por beltrano é improvável. O destino não é um cálculo estatístico, uma fórmula científica, uma sapiência assente em modelos matemáticos. O destino é o que tem de ser, descortinado no olhar do que já foi.

(...)

[Correspondência com Adalberto Teresio Marujo. Editora Curral Velho, 2013]     


1 comentário:

Anónimo disse...

Que fotografia linda (como todas do Homem de Azeitão)! pcp

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