A Fortaleza (para além das crises)
Virtude particularmente preciosa em tempos de crise é a fortaleza. É a
capacidade de continuar a viver e resistir em períodos longos e duros de
adversidade. Uma força espiritual e moral a que as gerações passadas atribuíam
enorme importância, a ponto de a chamarem virtude cardeal. A fortaleza permite
que não se abandone a luta quando tudo levaria a fazê-lo. É a fortaleza que nos
faz resistir na busca da justiça em contextos de corrupção; que nos faz
continuar a pagar impostos quando muita gente o não faz; a respeitar os outros
quando não nos respeitam a nós; a ser não violentos em ambientes violentos. É
ela que nos mantém temperados ainda que imersos na intemperança, que nos faz
resistir anos e anos num posto de trabalho errado, que nos faz ficar na família
ou comunidade mesmo que todos e tudo, exceto o nosso íntimo, nos digam para ir
embora.
É uma virtude a par das outras, mas, como e mais do que as outras
virtudes cardeais, é também uma dimensão ou pré-condição para poder viver todas
as outras virtudes quando se atua em contextos difíceis, e quando as condições
difíceis se mantêm por muito tempo. É uma virtude que serve todas as outras,
porque nos faz ir por diante quando falta reciprocidade. Por isso uma bela
palavra que hoje recolhe muitos dos significados da fortaleza é resiliência,
que diz também a capacidade de a pessoa não ceder, de se manter agarrada às
paredes, de não escorregar nos diferentes declives da vida pessoal e civil. Por
esta razão a fortaleza foi – e é – a salvação sobretudo dos pobres, que graças
a ela conseguem muitas vezes resistir à injusta falta de recursos, direitos,
liberdade, respeito. Fá-los resistir durante longas carestias, intermináveis ausências
de maridos e filhos emigrados ou desaparecidos na guerra (existe uma relação
especial entre a fortaleza e a mulher). Dá aos tantos Edmond Dantès da história
e do presente, a força de esperar mesmo quando encerrados em prisões por
decénios, só pelo facto de serem pobres. E também a fortaleza conhece a lógica
paradoxal de todas as virtudes.
Na verdade, em momentos decisivos da vida a fortaleza deve ser capaz de
se transformar em fraqueza para ser verdadeiramente virtuosa. A aceitação
dócil de uma desventura, uma doença grave, um fracasso, uma viuvez, ou a
reconciliação com aquela última etapa da vida quando alguém (ou a voz interior)
nos diz que chegou a nossa hora. A dignidade e a força moral nestes momentos de
fraqueza virtuosa dependem decididamente de quanta fortaleza fomos capazes de
acumular ao longo da existência. A fortaleza é pois essencial para resistir e
vencer a tentação, uma palavra que saiu do horizonte das nossas cidades porque
é verdadeira de mais para ser entendida pela nossa incivilidade de consumos e
apostas (na finança e em jogos de azar). E pelo contrário as tentações existem,
e sabê-las reconhecer e ultrapassar significa não perder-se na vida.
É a
fortaleza que faz recusar ofertas de empresas imorais, impede a venda
especulativa de uma boa empresa familiar que acumula gerações de amor, dor e
dedicação, que dá força para resistir a uma paixão errada e regressar fiel a
casa. A economia é uma parte da vida, e por isso tem também necessidade de
fortaleza para ser vida boa. Existem no entanto dois âmbitos nos quais a
fortaleza desempenha um papel essencial.
O primeiro refere-se diretamente à vida e vocação do empresário. Mesmo
se muita gente pensa – e infelizmente escreve também – exatamente o contrário,
a economia de mercado não é um sistema que recompensa regularmente o mérito e o
talento, ou que o recompensa melhor que outros sistemas (desporto, sociedades
científicas, família …).
Na dinâmica de mercado não existe uma relação certa entre o
comportamento virtuoso do empresário (inovação, lealdade, honestidade,
legalidade …) e o sucesso no mercado. Esta relação existe frequentemente, mas
pode não existir. Os resultados de uma empresa dependem de inumeráveis
circunstâncias, que podem mudar independentemente do controle e do mérito do empresário
ou empresária.
E assim pode acontecer que esforços meritórios fiquem sem recompensa, e
que o prémio vá para quem tem menos mérito ou talento. A desventura pode
atingir – e atinge de vez em quando – também o justo, o virtuoso empresário,
sobretudo em tempos de crise. A prática da virtude da fortaleza pode salvá-lo,
pode ajudá-lo a não se render, e a retomar a corrida.
O segundo âmbito, pelo contrário, situa-se no interior das organizações.
Quando uma empresa atravessa períodos de verdadeira crise, sobretudo as que
envolvem as motivações profundas das pessoas, a superação das mesmas depende da
presença nestes lugares de um número suficiente de pessoas com suficiente
resiliência. De facto, se não existir algum (pelo menos um) que indo para além
da lógica dos 'incentivos' continua a resistir e a lutar sem se preocupar com
horário e 'desperdício' de recursos, as crises de empresa não se ultrapassam. A
arte do governo de uma empresa consiste quase inteiramente em saber atrair
pessoas com altos valores de resiliência, em não deixá-las sair, e em conseguir
que a resiliênciafortaleza aumente ao longo da experiência de trabalho.
A
fortaleza, na verdade, precisa de ser constantemente alimentada, porque se é
certo que se aprende a ser forte praticando a fortaleza, é ainda mais certo que
sendo uma 'virtude de longo prazo', a fortaleza está particularmente sujeita ao
risco de esgotamento. Sinal inequívoco de que a fortaleza está acabando (ou
acabou) é a habitual frase: «Já não vale a pena», a indicar que não se consegue
já ver valor no esforço de resistência. É pois muito importante não considerar
nunca a fortaleza dos outros (nem a nossa) como característica imutável ou como
um stock, porque pode secar e até morrer se a pessoa não a cultivar (com a vida
interior, com a poesia, com a oração…), e se quem vive a seu lado não a
reforçar com expressões de estima, partilha, apreço, gratidão. É possível
resistir longamente em condições de grande dificuldade se não se está sozinhos,
mas na companhia da virtude dos outros e da própria interioridade
habitada.
Por fim, a fortaleza é indispensável para manter a alegria de viver
em condições de persistentes dificuldades, doenças, traições. Uma das coisas
mais sublimes do mundo é a existência de pessoas capazes de alegria verdadeira
em condições objetivas de grande adversidade. Este tipo de alegria-virtuosa é
um hino à vida, um bem comum que enriquece quantos por ela são contagiados. As
qualidades da fortaleza necessárias para conservar a alegria não são menos
preciosas e potentes das que permitem suportar as dificuldades e a dor. É esta
alegria o sacramento da autenticidade de todas as virtudes, uma alegria frágil
e forte, que torna o jugo das longas adversidades mais leve, e até mesmo suave.
Luigino Bruni
In Avvenire
Trad.:
P. António Bacelar
© SNPC | 05.02.14 (tirado daqui)
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