Para hoje, vai um tema
difícil. Daqueles que, quando menos se espera, invadem o nosso presente. Nada de
surreal. Antes, bem concreto ao longo
da história, por muito que se ignore uma realidade tão forte e marcante como a
morte. Arrisco o tema, porque mesmo a morte pode ter uma perspectiva mais
luminosa, quando alguém parte em paz.
No caso mais recente que testemunhei, ainda teve o mérito acrescido de ter “apenas”
31 anos. Aquela paz parece ter aliviado um pouco o mistério doloroso da morte, a
colidir descaradamente com um dos maiores apelos do coração humano: a vida.
Claro que deixou uma saudade imensa. Mas quando se parte plenamente conciliado com a vida, sentimos que se estará mais
preparado para sair do tempo e mergulhar na eternidade. De certo modo, intuímos
aquilo que Saramago verbalizou assim: «Fugir da
morte pode tornar-se num modo de fugir da vida.» No fundo, embora pareça
contraditório, vida e morte estão mais entrelaçadas e são mais convergentes do
que é comum admitir-se.
Naturalmente
que o desafio continua a ser colossal para quem fica, impondo-se-nos uma nova distância física e uma possibilidade de proximidade
espiritual, que nos são desconfortabilíssimas. Até pela estranheza.
Vem isto a propósito de
uma catadupa de partidas recentes,
algumas bem duras, várias de gente mais nova, repentinas, a deixarem vazios que
não sabemos preencher. Em concreto, a mais recente, revelou um lado positivo (apesar
de tudo), que poderá ajudar-nos a reconciliar com uma das horas mais difíceis
da humanidade.
Assim aconteceu, na
madrugada da Segunda passada, quando um rapaz de 31 anos já não acordou para
viver aquele dia invernoso, de céu carregado e rajadas de vento contínuas. Curiosamente,
o choque da notícia ficou algo atenuado, ou melhor, impregnado de uma onda de
bondade, que era a imagem de marca do Luís. Como se tivesse demorado a sua partida, para nos preparar (ele estava pronto!) para o adeus. Parecerá
inacreditável a quem não tenha vivido uma experiência semelhante, pois situa-se
e situa-nos numa esfera bem diferente da materialidade visível, que marca o
nosso dia-a-dia. O testemunho de confiança de tantos, na sua família, também
terá acentuado a nota de paz face àquela morte súbita, que arrasta sempre uma
dor gigantesca.
Numa das Igrejas do
Chiado, onde uma multidão – sobretudo de miúdos – incrivelmente serena veio rezar em redor, por
e com o Luís (bem sei como é esquisito, mas foi palpável), 3 dias a fio,
transbordava para a rua, em enorme desconforto, sob a chuva irritante e
ininterrupta. Era inexplicável o silêncio manso e, diria mesmo, carinhoso que
nos envolveu. Longas horas que puderam ser benignas, apesar da saudade. Por
isso, valerá a pena partilhar uns traços mínimos do perfil deste pequeno-grande
sábio, com que tantos tiveram a sorte de se cruzar.
Animadíssimo por natureza
e com óptima voz, era o protótipo do compincha, adorando cantar com os amigos.
Percebe-se que o gosto pela polifonia
contagiou todos os campos da sua vida:
Escreveu a mãe dele(1), há duas décadas, antecipando o que aqui
sentimos: que o Luís foi educado para a bondade, tendo-a interiorizado em pleno
e vivido com especial mansidão, numa mistura muito feliz. Talvez isso o tenha tornado
inesquecível:
«(…) quando penso no que quero para eles (meus filhos), o que quero que
sejam e consigam na vida, mais me convenço de que é esta a coisa tão simples,
tão metafísica e tão-sem-graça, que é… que sejam bons. É uma virtude chata, sem
graça, sem heroísmo, sem rasgos geniais, sem primeiros prémios, sem glória… mas
apesar de tudo, para que ‘o melhor do mundo sejam as crianças’ penso que é para
a bondade que elas têm de ser educadas.»
Escreveu, em Novembro de
2012, o próprio, com a fé simples e bem disposta que o caracterizava: «Durante muito tempo esperei pelos sinais do
Senhor para lhe dar o meu sim. Estava totalmente errado! Do sim que digo a Deus
diariamente é que os sinais se começam a tornar perceptíveis, visíveis no
dia-a-dia. Mais do que nunca, estou certo que ‘Aquele que começou em mim tão
boa obra há-de levá-la a bom termo até ao dia de Cristo Jesus’» (Nov.2012)
Bem se aplica ao Luís um
pensamento lindo de Saramago: «A vida é breve, mas cabe nela muito mais do
que somos capazes de viver.»
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
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