03 fevereiro 2014

Vai um gin do Peter’s?


O filme iraniano «O PASSADO»(1) , de Asghar Farhadi, está a entusiasmar, novamente, o público ocidental, depois do sucesso de «A SEPARAÇÃO» (em 2011) que talvez ainda seja mais extraordinário.

No epicentro, voltam a estar as fragilidades no relacionamento entre homem e mulher, com toda a envolvente familiar a sofrer em círculos concêntricos, penalizando, sobretudo, os mais próximos e frágeis – crianças, doentes e idosos.


Os perfis femininos de Farhadi tendem a ser reivindicativos e independentes, enquanto os masculinos são respeitadores, embora inflexíveis, até por não conseguirem encontrar lugar no novo quadro de relacionamento em que eles e elas desembocam. Frustrante. Na relação com os filhos, as diferenças e os confrontos ainda se acentuam mais: eles em super pais e elas em fracas mães, entre alheadas, eternas adolescentes ou, simplesmente, de um egocentrismo indisfarçável quando é chegada a hora das opções radicais. Aí, as prioridades são outras, enquanto neles a família está em primeiro lugar (isto, na perspectiva do realizador).

Impressiona e interpela a forma tão realista e, simultaneamente, misteriosa como a trama se adensa e todos parecem concorrer para desfechos que não desejariam, encaminhando-se, involuntariamente, para o vazio. Como se não tivessem plena noção das repercussões dos seus gestos diários. Sobretudo os triviais, de aparência insignificante, feitos espontaneamente, mas que não deixam de ser marcantes. De algum modo, ecoa aqui a frase fortíssima e estranha do Evangelho, a lembrar o oposto do que costumamos valorizar, tomados pelo comodismo e pela mania das grandezas: «Aquele que é fiel nas coisas pequenas será também fiel nas coisas grandes. E quem é injusto nas coisas pequenas, sê-lo-á também nas grandes (Lc.10, 10).». Tendemos, antes, a achar que uma coisa são os pequenos momentos e os pequenos gestos (como se os houvesse), onde nos permitimos funcionar em piloto automático, outra os grandes momentos, de envergadura histórica, que precisamos de levar a sério. Só que nada é inconsequente. E quando não se treinam respostas capazes nos desafios menores, nunca se conseguirá responder bem aos maiores. Uma la-palissade que é demonstrável pela carreira de qualquer atleta, por exemplo.

O mais incrível na ruptura entre eles e elas nem é a falta de respeito ou sequer de amor profundo um pelo outro, mas a total incapacidade de se relacionarem de forma positiva, em favor um do outro. O que depois reverteria a favor do próprio.


Claro que há traços de carácter que podem desajudar. Mas o principal óbice reside no facto de fazerem pesar mais o ressentimento pelas falhas acumuladas, pelos comportamentos desastrados ou até ofensivos (ainda que comezinhos), pela impotência e incapacidade de aguentar uma relação com feridas e humilhações, do que a realidade maior de ainda gostarem um do outro. Entregam-se ao trauma do sofrimento passado, deixando-se bloquear num beco psicológico. Desesperados, alguns até despeitados, a grande tentação é agredir, trair, infernizar o outro, consentindo que a pequena revanche se sobreponha ao mais positivo que ainda possa existir entre ambos, embora já não se saiba como exprimi-lo, sem se virar um kamikaze pueril e tolo. Um dilema bem actual e dilacerante, onde os filhos ficam, as mais das vezes, à deriva, em limbos inóspitos.

Está montado o terreno fértil para os mal-entendidos, um sem-fim de desconfianças e des-sintonias, altamente potenciados pela impaciência generalizada e agravados pelo endurecimento afectivo, que não favorece a lealdade. Na prática, pouco mais exigiria do que assumir-se a quota-parte de responsabilidades nos equívocos e erros cometidos em cadeia.

Rápidos na acusação do próximo, mas insensíveis a discernir e aceitar o contributo dado (normalmente, em dose de leão!) para o rastilho de disparates, o mal enrodilha-se em crescendo e atinge um maior número de vítimas, até alguém ter a coragem de interromper o círculo castigador e ter um gesto de pura generosidade. No fundo, trata-se “apenas” de assumir a verdade. Sim, enxergar-se! Aí, o melhor pode começar a irromper, onde e quando menos se espera…

Nesta portentosa história não há soluções fáceis nem directas. Menos ainda happy-ends artificiais. Tudo (de)corre ao fio da navalha, como a vida, muito (demasiado?) dependente das nossas pequenas decisões. As do dia-a-dia.  

O início do filme é crucial e soberbo, semelhante ao que fora «A Separação», atirando-nos para o emaranhado tão subtil e paradoxal onde as personagens se situam. Por entre a parede de vidro que separa os passageiros dos que os esperam, no aeroporto, a parisiense acena ao ex-marido, acabado de chegar de Teerão, trocando mensagens e sinais, através da superfície transparente, que só eles conseguem descodificar. Entendem-se na perfeição. Percebe-se que se conhecem muitíssimo bem! Cá fora, cara a cara, também se percebe que imensos sentimentos se misturam, em múltiplas gradações: dos luminosos aos sombrios, estes últimos despoletados (dir-se-ia) por algum desconforto e vergonha. Quais prevalecerão?
    

Descobrimos, aos poucos, que desajuda enormemente ela ter uma agenda, não resistindo a alguma manipulação e à necessidade exacerbada de afirmação pessoal. Embora bastante desajeitada e desconfortável neste papel, não deixa de ir envenenando o ambiente, talvez bem mais do que quisesse, abrindo pequenas fissuras, que quebram nos elos mais fracos. Nem tanto no ex-marido, já q.b. refeito de todo o trauma passado, mas nos mais novos, que absorvem como esponjas todo o ambiente circundante, precisadíssimos do apoio dos adultos em redor. E esbarram em adultos sem disponibilidade psicológica, concentrados em gerir, in extremis, a precariedade da sua circunstância fugidia, em que o chão parece fugir-lhes debaixo dos pés. Inadvertidamente, adiam a maternidade e a paternidade, como se fosse o menor dos problemas em mãos. Surgem logo brechas que, por sorte, outras presenças benignas colmatam, na hora. Mas aí, irrompe o ciúme, sem pedir licença, até porque se está fragilizado. Confirma-se à letra que a asneira puxa a asneira, como quis traduzir o Eça a expressão poética de abismo atrai abismo, em «As Minas de Salomão» (o bestseller de Henry Rider Haggard, 1885). Por isso, quase tudo o que podia correr mal, nem hesitou em correr pessimamente.
   

Era expectável que o filme recebesse o Prémio Ecuménico pela sua enorme abertura a todos os credos e etnias, provando a universalidade dos sentimentos mais profundos do ser humano. Dos que conferem identidade. Aqui, como já acontecera em «A Separação», não há motivos para invocar choques civilizacionais ou desentendimentos culturais sérios, que pudessem justificar as óbvias dificuldades de compreensão entre humanos. Porque tudo reside nas escolhas de coração, no discernimento de cada um, no exercício da liberdade e da vontade, que faz preferir este ou aquele rumo. As inflexões de atitudes de algumas personagens mostram-no à saciedade. Algumas vezes, pelos melhores motivos. É disso exemplo o namorado da parisiense, que antes parecera tão apostado em tentar recomeçar vida numa nova família, tentando ignorar um passado que, teimosamente, não se deixava cair no esquecimento…

Isto dito, claro que também se assiste à diferença entre culturas e à saudável diversidade de posturas na vida. É expressiva a reacção do namorado marroquino contra a facilidade em perdoar as travessuras dos mais novos, através de um simples pedido de desculpa à parte ofendida, considerando antipedagógico. Só um castigo forte ajudaria a corrigir comportamentos. Mas nem a parisiense nem o iraniano professam a mesma opinião, ela pela sua herança cultural e ele talvez pelo seu carácter paternal e tolerante.

Outro momento de confronto de culturas ocorre no início, quando falam sobre o novo namorado daquela que agora iria oficializar o divórcio com o iraniano Ahmad:

 Ahmad: When did you meet each other? (referindo-se ao novo namorado da ex-mulher)
Marie Brisson: In drugstore. He came to get his wife's medicines.
[Ahmad sneers ]
Marie Brisson: What?   (em tom zangado)
Ahmad: In our culture is laughing.
Marie Brisson: But in our culture is mocking!
[They discuss with each other]
Marie Brisson: Just your hair became white!

No confronto entre tempos diferentes – o passado versus o presente – num dilema tão antigo quanto universal, a reflexão do filósofo espanhol Jorge Santayana (1863-1952), muito aplicado ao drama de Auschwitz, pode estender-se (com as devidas distâncias) a todas as tentativas de apostar num presente totalmente demarcado do que se viveu, como se fosse possível ou sequer benéfico: «Quem não recorda o passado, está condenado a repeti-lo.»

O ponto de equilíbrio não é fácil, entre a tentação do passadismo e a omissão liminar da memória. Um conselho sugestivo da escritora Karen Salmansohn vai directa ao essencial: «The past is good to learn from but not to live in».

O perigo de submeter a memória a um apagão confortável (no curto prazo) para se recomeçar em branco, alimentou as utopias ideológicas do século XX que, como todas as utopias, acabou por violentar a realidade, virando-se, depois, contra os próprios. Em doses ampliadas. Nos antípodas, fica a possibilidade de repor os laços quebrados, os erros cometidos, as agressões infligidas, através do perdão. Nesse sentido, o filme escancara um pequeno horizonte de soluções graduais dos problemas, compensações, ainda que parciais, dos males de outrora, a partir do mais simples e do mais exigente dos gestos: o amor ao próximo. Querendo voltar a confiar.

Em boa verdade, o título também poderia ter sido «O Futuro». O aperto de mão, na cama do hospital entre duas personagens cruciais deixa mil hipóteses em aberto. Das benignas…


Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA


Título original:
LE PASSÉ
Título traduzido em Portugal:
O PASSADO
Realização:
Asghar Farhadi
Argumento:
Asghar Farhadi
Duração:
130 min.
Ano:      
2013
País:

        Elenco:

A parisiense Marie (Bérénice Bejo) – premiada em Cannes como a Melhor Actriz;
Ex-marido iraniano Ahmad (Ali Mosaffa);
Novo namorado, o marroquino Samir (Tahar Rahim);
Filha mais velha Lucie (Pauline Burlet).

Local das filmagens:

Paris



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