O filme iraniano «O PASSADO»(1)
, de Asghar Farhadi, está a entusiasmar,
novamente, o público ocidental, depois do sucesso de «A SEPARAÇÃO» (em 2011)
que talvez ainda seja mais extraordinário.
No epicentro, voltam a estar as
fragilidades no relacionamento entre homem e mulher, com toda a envolvente
familiar a sofrer em círculos concêntricos, penalizando, sobretudo, os mais
próximos e frágeis – crianças, doentes e idosos.
Os perfis femininos de Farhadi tendem
a ser reivindicativos e independentes, enquanto os masculinos são
respeitadores, embora inflexíveis, até por não conseguirem encontrar lugar no
novo quadro de relacionamento em que eles e elas desembocam. Frustrante. Na
relação com os filhos, as diferenças e os confrontos ainda se acentuam mais:
eles em super pais e elas em fracas mães, entre alheadas, eternas adolescentes
ou, simplesmente, de um egocentrismo indisfarçável quando é chegada a hora das
opções radicais. Aí, as prioridades são outras, enquanto neles a família está em
primeiro lugar (isto, na perspectiva do realizador).
Impressiona e interpela a forma tão
realista e, simultaneamente, misteriosa como a trama se adensa e todos parecem
concorrer para desfechos que não desejariam, encaminhando-se, involuntariamente,
para o vazio. Como se não tivessem plena noção das repercussões dos seus gestos
diários. Sobretudo os triviais, de aparência insignificante, feitos espontaneamente,
mas que não deixam de ser marcantes. De algum modo, ecoa aqui a frase fortíssima
e estranha do Evangelho, a lembrar o oposto do que costumamos valorizar, tomados
pelo comodismo e pela mania das grandezas: «Aquele
que é fiel nas coisas pequenas será também fiel nas coisas grandes. E quem é
injusto nas coisas pequenas, sê-lo-á também nas grandes (Lc.10, 10).». Tendemos,
antes, a achar que uma coisa são os pequenos momentos e os pequenos gestos
(como se os houvesse), onde nos permitimos funcionar em piloto automático, outra os grandes momentos, de envergadura
histórica, que precisamos de levar a sério. Só que nada é inconsequente. E
quando não se treinam respostas capazes nos desafios menores, nunca se
conseguirá responder bem aos maiores. Uma la-palissade
que é demonstrável pela carreira de qualquer atleta, por exemplo.
O mais incrível na ruptura entre eles e elas nem é a falta de respeito ou sequer
de amor profundo um pelo outro, mas a total incapacidade de se relacionarem de forma
positiva, em favor um do outro. O que depois reverteria
a favor do próprio.
Claro que há traços de carácter que
podem desajudar. Mas o principal óbice reside no facto de fazerem pesar mais o
ressentimento pelas falhas acumuladas, pelos comportamentos desastrados ou até
ofensivos (ainda que comezinhos), pela impotência e incapacidade de aguentar
uma relação com feridas e humilhações, do que a realidade maior de ainda
gostarem um do outro. Entregam-se ao trauma do sofrimento passado, deixando-se bloquear
num beco psicológico. Desesperados, alguns até despeitados, a grande tentação é
agredir, trair, infernizar o outro, consentindo que a pequena revanche se
sobreponha ao mais positivo que ainda possa existir entre ambos, embora já não
se saiba como exprimi-lo, sem se virar
um kamikaze pueril e tolo. Um dilema bem actual e dilacerante, onde os filhos ficam,
as mais das vezes, à deriva, em limbos inóspitos.
Está montado o terreno fértil para os
mal-entendidos, um sem-fim de desconfianças e des-sintonias, altamente
potenciados pela impaciência generalizada e agravados pelo endurecimento
afectivo, que não favorece a lealdade. Na prática, pouco mais exigiria do que
assumir-se a quota-parte de responsabilidades nos equívocos e erros cometidos em
cadeia.
Rápidos na acusação do próximo, mas
insensíveis a discernir e aceitar o contributo dado (normalmente, em dose de
leão!) para o rastilho de disparates, o mal enrodilha-se em crescendo e atinge
um maior número de vítimas, até alguém ter a coragem de interromper o círculo castigador e ter um gesto de
pura generosidade. No fundo, trata-se “apenas” de assumir a verdade. Sim, enxergar-se!
Aí, o melhor pode começar a irromper, onde e quando menos se espera…
Nesta portentosa história não há
soluções fáceis nem directas. Menos ainda happy-ends
artificiais. Tudo (de)corre ao fio da navalha, como a vida, muito (demasiado?) dependente
das nossas pequenas decisões. As do
dia-a-dia.
O início do filme é crucial e soberbo,
semelhante ao que fora «A Separação», atirando-nos para o emaranhado tão subtil
e paradoxal onde as personagens se situam. Por entre a parede de vidro que
separa os passageiros dos que os esperam, no aeroporto, a parisiense acena ao
ex-marido, acabado de chegar de Teerão, trocando mensagens e sinais, através da
superfície transparente, que só eles conseguem descodificar. Entendem-se na
perfeição. Percebe-se que se conhecem muitíssimo bem! Cá fora, cara a cara,
também se percebe que imensos sentimentos se misturam, em múltiplas gradações:
dos luminosos aos sombrios, estes últimos despoletados (dir-se-ia) por algum
desconforto e vergonha. Quais prevalecerão?
Descobrimos, aos poucos, que desajuda
enormemente ela ter uma agenda, não
resistindo a alguma manipulação e à necessidade exacerbada de afirmação pessoal. Embora bastante
desajeitada e desconfortável neste papel, não deixa de ir envenenando o
ambiente, talvez bem mais do que quisesse, abrindo pequenas fissuras, que
quebram nos elos mais fracos. Nem tanto no ex-marido, já q.b. refeito de todo o
trauma passado, mas nos mais novos, que absorvem como esponjas todo o ambiente
circundante, precisadíssimos do apoio dos adultos em redor. E esbarram em adultos
sem disponibilidade psicológica, concentrados em gerir, in extremis, a
precariedade da sua circunstância fugidia, em que o chão parece fugir-lhes debaixo
dos pés. Inadvertidamente, adiam a maternidade e a paternidade, como se fosse o
menor dos problemas em mãos. Surgem logo brechas que, por sorte, outras
presenças benignas colmatam, na hora. Mas aí, irrompe o ciúme, sem pedir
licença, até porque se está fragilizado. Confirma-se à letra que a asneira puxa a asneira, como quis
traduzir o Eça a expressão poética de abismo
atrai abismo, em «As Minas de Salomão» (o bestseller de Henry Rider
Haggard, 1885). Por isso, quase tudo o que podia correr mal, nem hesitou em
correr pessimamente.
Era expectável que o filme recebesse
o Prémio Ecuménico pela sua enorme
abertura a todos os credos e etnias, provando a universalidade dos sentimentos
mais profundos do ser humano. Dos que conferem identidade. Aqui, como já
acontecera em «A Separação», não há motivos para invocar choques
civilizacionais ou desentendimentos culturais sérios, que pudessem justificar
as óbvias dificuldades de compreensão entre humanos. Porque tudo reside nas
escolhas de coração, no discernimento de cada um, no exercício da liberdade e
da vontade, que faz preferir este ou aquele rumo. As inflexões de atitudes de
algumas personagens mostram-no à saciedade. Algumas vezes, pelos melhores
motivos. É disso exemplo o namorado da parisiense, que antes parecera tão
apostado em tentar recomeçar vida numa nova família, tentando ignorar um
passado que, teimosamente, não se
deixava cair no esquecimento…
Isto dito, claro que também se assiste
à diferença entre culturas e à saudável diversidade de posturas na vida. É
expressiva a reacção do namorado marroquino contra a facilidade em perdoar as
travessuras dos mais novos, através de um simples pedido de desculpa à parte
ofendida, considerando antipedagógico. Só um castigo forte ajudaria a corrigir
comportamentos. Mas nem a parisiense nem o iraniano professam a mesma opinião,
ela pela sua herança cultural e ele talvez pelo seu carácter paternal e
tolerante.
Outro momento de confronto de
culturas ocorre no início, quando falam sobre o novo namorado daquela que agora
iria oficializar o divórcio com o iraniano Ahmad:
Ahmad: When did
you meet each other? (referindo-se ao novo namorado da ex-mulher)
Marie Brisson: In
drugstore. He came to get his wife's medicines.
[Ahmad sneers ]
Marie Brisson: What? (em tom zangado)
Ahmad: In our
culture is laughing.
Marie Brisson: But
in our culture is mocking!
[They discuss with each other]
Marie Brisson: Just
your hair became white!
No confronto entre tempos diferentes
– o passado versus o presente – num dilema tão antigo quanto universal, a
reflexão do filósofo espanhol Jorge Santayana (1863-1952), muito aplicado ao drama
de Auschwitz, pode estender-se (com as devidas distâncias) a todas as tentativas
de apostar num presente totalmente demarcado do que se viveu, como se fosse
possível ou sequer benéfico: «Quem não recorda o passado, está condenado a
repeti-lo.»
O ponto de equilíbrio não é fácil,
entre a tentação do passadismo e a omissão liminar da memória. Um conselho
sugestivo da escritora Karen Salmansohn vai directa ao essencial: «The past is good to
learn from but not to live in».
O perigo de submeter a memória a um apagão confortável (no curto prazo) para
se recomeçar em branco, alimentou as
utopias ideológicas do século XX que, como todas as utopias, acabou por violentar
a realidade, virando-se, depois, contra os próprios. Em doses ampliadas. Nos
antípodas, fica a possibilidade de repor os laços quebrados, os erros
cometidos, as agressões infligidas, através do perdão. Nesse sentido, o filme
escancara um pequeno horizonte de soluções graduais dos problemas,
compensações, ainda que parciais, dos males de outrora, a partir do mais
simples e do mais exigente dos gestos: o amor ao próximo. Querendo voltar a confiar.
Em boa verdade, o título também
poderia ter sido «O Futuro». O aperto de mão, na cama do hospital entre duas
personagens cruciais deixa mil hipóteses em aberto. Das benignas…
Maria
Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
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(1)
FICHA TÉCNICA
Título
original:
|
LE PASSÉ
|
Título
traduzido em Portugal:
|
O PASSADO
|
Realização:
|
Asghar Farhadi
|
Argumento:
|
Asghar Farhadi
|
Duração:
|
130 min.
|
Ano:
|
2013
|
País:
|
|
Elenco:
|
A parisiense Marie (Bérénice Bejo) – premiada em Cannes como a Melhor
Actriz;
Ex-marido iraniano Ahmad (Ali Mosaffa);
Novo namorado, o marroquino Samir (Tahar
Rahim);
Filha mais velha Lucie (Pauline Burlet).
|
Local das filmagens:
|
Paris
|
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