Gandhi recomendava-nos
sermos a mudança que queríamos ver no mundo! Incrivelmente realista e
pragmático. Só não pontua para uma la-palissada, por ser demasiado profundo e até
revolucionário.
São a partir de
considerações também simples e exigentes que um artigo do Miguel Esteves
Cardoso (MEC) nos fala, exemplificando com a atitude espantosa de um pequenino.
Uma atitude invulgarmente pura, que o MEC associa à fase mais genuína de um
miúdo, antes de entrar no infantário, e portanto ainda não triturado por uma
máquina de massificação pseudo-didática que acaba por estimular os métodos de
sobrevivência mais atarracados… Tudo preformatado e sob controle é quanto basta
à ordem social. Alexandre Dumas também professava a mesma opinião, considerando
nefasta a influência das escolas sobre a mente aberta e cristalina das crianças.
Sem entrar nesta polémica
muito antiga sobre a bondade da primeira infância que seria perturbada pela
educação convencional imposta pelos adultos mais novos, há uma questão a que
não nos devemos esquivar, na vida: onde paira a nossa humanidade? A pergunta
pode assumir múltiplas fórmulas: em que seres humanos nos transformámos? Onde
está o nosso coração e a escala de valores que realmente seguimos? Reabre-se toda
uma reflexão que passa também pela relação com o próximo, como o encaramos. E
tudo começa no olhar…
Numa linda de raciocínio não
muito distante da do MEC, um frade do século XVI ousou desafiar a hierarquia do
seu tempo, para pedir ao navegador europeu que antes de desbravar novos
territórios se empenhasse em descobrir o rosto humano em cada indígena dos
lugares longínquos. Explicou, poeticamente, que se tratava de um «homem novo»
descoberto por um «homem velho», para sublinhar a igual estatura e configuração
humanas, merecedoras de igual dignidade! Claro que agitou águas e gerou
controvérsia e, só não foi silenciado, porque tinha demasiada autoridade, que
usou para confrontar tudo e todos, a começar pelo imperador Carlos V.
Em duas perspectivas convergentes,
MEC e Frei Bartolomeu de las Casas pedem a cada um mais humanidade. Os séculos
que os separam em nada diminuem a actualidade e urgência do seu apelo. Aqui
ficam, o mais antigo lembrado num artigo publicado há dias, nos media:
Obrigado, Mãe
No Porto as pessoas estão mais
próximas delas próprias, do que sofrem e do que sentem e, assim, acabam por
aproximar-se mais dos outros. Tanto no sentido de serem mais vizinhos das
nossas almas como no sentido de se parecerem mais. Não há grande diferença.
Faz pensar em Lévinas e, por muito frívolo que seja citá-lo ou resumi-lo, por ser tão fácil e bom lê-lo, lembra-nos que o rosto da outra pessoa é, por não haver outro, o rosto de Deus. O que diz, acima de tudo, o rosto do Outro - toda a gente menos cada eu que nós somos - é "não me mates". Ao menos isso.
Aconteceu com uma avó que, no meio de muitas penas contadas, contou, para compensar, uma história ocorrida naquela mesma manhã. O bisneto dela, que em Agosto atingirá os três anos de idade, foi à praia com a neta. Quando começaram a preparar-se para voltar para casa, o neto, enquanto a mãe o calçava, disse: "Mãe: obrigado pela manhã que me deste."
É lindo. Chorou enquanto contava e explicou que já não era a primeira vez, porque os adultos aprendem a agradecer para comover e ganhar com isso, mas as crianças que ainda não foram para nenhum infantário eram lindamente sinceras, inocentes de qualquer manipulação.
Depois a avó chamou a neta, para contar como tinha sido. A mãe, também a chorar (como nós), recontou a frase: "Mamã: obrigado por me teres trazido à praia."
Era menos literário. Mas era, à mesma, excepcional. O miúdo é um poeta mas, na versão da bisavó, é já um clássico.
Miguel
Esteves Cardoso, in «Público», 2012.07.12
Valladolid: a voz de Las Casas
Valladolid foi, até à mudança da capital para
Madrid (1606), uma cidade politicamente decisiva numa Espanha que juntou a
unificação da Península Ibérica com a construção de um império mundial. O
visitante que caminhe da Plaza Mayor para o Colegio de San Gregorio, que é hoje
sede do Museu Nacional de Escultura, realiza também uma viagem no tempo.
Contudo, nesse belíssimo edifício o que se celebra é um acontecimento raro e
hoje esquecido. A capacidade de um império se colocar a si próprio em causa. Na
verdade, foi nesse edifício que se realizou a famosa Controvérsia de Valladolid
(ou Junta de Valladolid) em duas sessões, respetivamente, no verão de 1550 e na
primavera de 1551. O imperador Carlos V e o seu filho, o futuro Filipe II,
decidem promover uma discussão entre as maiores inteligências de Espanha, em
que o que está em causa é a própria legitimidade do seu império ultramarino. O
imperador era sensível, desde jovem, aos argumentos de Frei Bartolomeu de Las
Casas (1484-1566), um incansável dominicano que viajara com Colombo, um homem
tão corajoso fisicamente como brilhante na palavra escrita e dita. Las Casas
atravessou 28 vezes o Atlântico para defender os "índios" do
extermínio! Na controvérsia contra o partido imperialista liderado por Ginés de
Sepúlveda, os argumentos de Las Casas surgem com uma clareza cristalina. Nem
mácula de racismo ou paternalismo. Os "homens novos" da América são
iguais aos "homens velhos" da Europa. Têm direito à sua cultura, às
suas terras, ao seu poder próprio. Só o livre consentimento pode levar os
homens a aceitar um novo soberano, ou a converter-se a uma nova religião. Tudo
o resto é brutalidade ilegítima e imoral. A voz de Las Casas continua a vibrar.
O nosso futuro precisa dela. Mais do que nunca.
Viriato Soromenho-Marques, in «Diário de
Notícias», 2014.08.10
Sendo tão desintoxicante revermos
onde estamos e para onde vamos, nem sempre há tempo para parar e pensar. Nesta
fase de Verão, joga a nosso favor os dias compridos, para alguns ainda de
férias, que parecem esticar as horas do dia. Talvez o gosto de saborear todos
os segundos de luz até a noite descer, nos ajudem a rentabilizar as horas do
dia, chegando-se à fórmula ideal: melhor tempo dá em mais tempo. Ainda bem que
Setembro está só a começar…
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
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