15 junho 2015

Vai um gin do Peter’s?

O comovido filme em versão documentário «O SAL DA TERRA»(1) sobre a obra de Sebastião Salgado constitui, logo no título, um hino à criação, começando pelo ser humano, que um amigo do fotógrafo elevou à categoria de sal da terra, neste planeta cheio de contradições. É conhecida a origem da expressão, proferida por um outro Amigo, que a formulou como pedido aos seus condiscípulos para ajudarem a devolver aos homens o gosto pela vida. A versão completa desse pedido abrange a dupla dimensão de dar tempero ao dia-a-dia e ser luz do mundo. Embora não esteja ao alcance de todos trazer salero à existência, é indiscutível o contributo maior dado à humanidade pelo artista brasileiro.

Na fazenda dos Salgados, onde aprendeu com o pai a observar
minuciosamente o horizonte. No fundo, começou aí a paixão por captar imagens    

 A história da sua arte emerge e confunde-se com a sua biografia, sustentada pela mulher Leila, também ela  artista. Aqui desfiada através da câmara de outro poeta – o grande realizador alemão Wim Wenders –  num mano-a-mano com o filho de Salgado, Juliano, sente-se a omnipresença de Leila. Talvez por isso não se estranhe o resultado de um filme que mais se aproxima de uma sinfonia composta a várias mãos, apesar da banda sonora ser tão sóbria, à maneira de Manoel de Oliveira, sem nunca ser um mero adereço para entreter. Antes sublinha ou assume por inteiro a mensagem que passa na tela, nos poucos trechos musicados.

Avançando em espiral, o documentário retorna ciclicamente ao ponto de partida – a enorme propriedade dos Salgados, onde Sebastião nasceu e viveu com os pais e 6 ou 7 irmãs, até partir para o liceu e a universidade, na cidade. Depois de uma infância alegre e descomprometida, passada na enorme fazenda familiar (600 ha) coberta pela frondosa mata atlântica, apanhou-se desprevenido quando se viu entregue a si próprio, no burgo. Nem sabia o que fazer com o dinheiro que o pai lhe dera. A ponto de passar fome, nas primeiras semanas, desconhecendo as mais elementares regras de sobrevivência urbana. Salvou-o uma estudante gira e pragmática, por quem se apaixonou à primeira vista: Leila, a mulher da sua vida desde o minuto em que entrou no seu horizonte visual.

Terminado o curso de economia, esperava-o o exílio, em França, para fugir às perseguições políticas da ditadura brasileira (de 1964 a 1985), a apertar o cerco às contestações estudantis, activamente participadas por Sebastião e Leila. A necessidade da mulher fazer uma reportagem fotográfica para uma das cadeiras da universidade resultou no primeiro contacto de Sebastião com a fotografia. Enquanto ela se enfastiou com o TPC, ele descobriu um hobby apaixonante. A ponto de concordarem que valia a pena arriscar o sustento do casal naquela paixão, profissionalizando-a. Investiram, então, as suas poupanças em bom equipamento fotográfico, programaram ao pormenor os temas a explorar e partiram para os locais mais recônditos, fiéis à sua veia reivindicativa e de intervenção social. A teleobjectiva de Sebastião converteu-se em verdadeira arma de arremesso, denunciando as injustiças que se perpetuavam na clandestinidade. Tencionava trazer à luz aquele universo de trevas escravizantes para os deserdados da terra, atrevendo-se a ser a luz do mundo e a beliscar os poderosos.

Nas minas, nas povoações paupérrimas e subnutridas, nos circuitos de guerra que cruzam as apetecíveis rotas de matérias-primas valiosas, nos campos de refugiados, nos êxodos maciços de multidões à mercê de guerrilheiros ou de catástrofes, nos desastres naturais e nos crimes ecológicos de multinacionais predadoras ou de déspotas insensíveis, a máquina fotográfica de Salgado revelou ao mundo a dor dos impotentes. Sempre a apontar para o alvo menos atractivo e anónimo: os rostos sofridos e sem voz. E são tantos!


 Entremeando as imagens, maravilhosamente orquestradas pela câmara de W.Wenders, com o testemunho de Salgado num francês fluente, percorremos os maiores projectos da sua carreira.

Até ao fim do século XX, dominam as reportagens de cariz social, com forte componente solidária e até intimista, mas zero de voyeurismo. Tornando sublime tudo o que vê, o fotógrafo nem precisa de nos confirmar o relacionamento próximo que estabeleceu com todos os que fotografou, ouvindo muito, criando fortes empatias e deixando amigos por todo o lado. A perspectiva artística permite-lhe registar facetas mais íntimas sem invadir nem desfear a realidade. Antes elevando-a ao patamar de Arte, no sentido mais puro e clássico, de transmitir através do Belo. Um belo capaz de salvar o mundo, como acreditava Dostoievski. Só Salgado para nos mostrar o rosto de uma criança no esquife, de olhos escancarados, sem chocar nem desrespeitar, antes convidando-nos a partilhar a dor daquela família enlutada. E são tantas.

Oriental cega, que aceitou posar para Salgado, tornando-se porta-voz
dos proscritos. O fotógrafo mostra a imagem com uma ternura especial    

O filho tinha toda a razão em considerá-lo um aventureiro e até um super-homem, quando via o pai desaparecer em longas ausências para desbravar destinos longínquos e pouco conhecidos. Não tinha ainda idade para perceber o alcance do serviço que os pais prestavam à humanidade por não excluírem ninguém. Nada óbvio, nem comum.
 
O silêncio maravilhoso do seu repertório a preto-e-branco, ou melhor, das milhares de gradações entre o prateado e o antracite, foi bem explicado por Salgado, quando lhe perguntaram por que recusava fotografar as cores da realidade (questão que não se colocou a W.Wenders). Como o horizonte visual é incomensuravelmente maior do que o registo fotográfico, a cor pode facilmente perturbar o conjunto ao impor elementos mais vistosos no microuniverso captável pela fotografia. Isso aconteceu-lhe quando fotografou as colinas arborizadas da propriedade dos pais e uma flor campestre se salientou com o seu colorido intenso, desequilibrando completamente o conjunto. A olho nu nem sequer sobressaía. A partir de então, preferiu o preto-e-branco, que somava a vantagem de permitir relevações mais baratas e fáceis de manusear em casa.  


Nos idos anos 90, a reportagem no Ruanda, onde se atreveu a calcorrear os caminhos pejados de fugitivos que avançavam em sentido oposto, deixou Salgado destroçado. Nas suas palavras, viu literalmente 150km de cadáveres brutalizados, que tingiam a paisagem de sangue. Sangue de inocentes.

De regresso a casa, esperava-o a responsabilidade de gerir a fazenda dos Salgados, após a morte do pai. Leila percebeu, como ninguém, a que ponto o marido ficara bloqueado pela overdose de atrocidades que vira. Teve, então, a ideia genial de suspenderem as reportagens e lançaram-se na reflorestação da herdade que, entretanto, se desertificara. O contacto com a natureza operou milagres na família e no solo, que antes parecia estéril. Diferentemente das imagens de denúncia a horrores já cometidos, neste projecto agrícola Salgado experimentou a alegria de conter e reverter uma paisagem devastada. Fez bem a todos assistir ao renascimento fulgurante da natureza. No espaço de uma década, o horizonte voltou a ser verde. Milhões de espécies da mata atlântica voltaram a cobrir o solo árido de outros tempos e até os jaguares regressaram. Generosamente, o casal decidiu fundar ali o Instituto Terra e oferecer Estado brasileiro para que todos pudessem gozar daquele espaço luxuriante.

Quem diria que depois de se achar ferido de morte para a sua profissão, o melhor ainda estava para vir. Novamente, a clarividência de Lélia franqueou-lhe uma alternativa, mudando o foco para a grandiosidade da natureza: “Genesis” seria a nova aposta, enveredando pelo mundo natural. Vários amigos desaconselharam-no, pois não seria aos 50 que se poderia reinventar, ainda por cima num segmento de concorrência feroz entre veteranos da fotografia paisagística. Mas já recuperado pela paragem sabática no território da sua infância, Salgado seguiu o feeling de Leila e lançou-se na descoberta dos seres mais antigos do planeta. Recuando aos primórdios da criação, plantas, animais e tribos milenares desfilam pela sua teleobjectiva, com a elegância e beleza únicas das suas fotografias! Um sucesso rotundo, que presta homenagem ao planeta azul.

Nos Galápagos, a pata de um lagarto lembrou
a Salgado a mão de um cavaleiro medieval    

A facilidade com que apanha perspectivas demasiado próximas do que pensávamos serem animais perigosos, percebemos não ser truque de zooms híper potentes, mas a proximidade real de um aventureiro que nos conta como ficou enternecido pela confiança do leão-marinho que se veio estender ao seu lado, à beira-mar, ou da baleia que vinha acostar à sua embarcação para receber umas festas, divertindo-se depois a saltar nas ondas a uma boa distância do barco do amigo para não correr o risco de o abalroar! Uma delicadeza incrível. Lembra S.Francisco que conseguia ser próximo de todas as criaturas, entre a irmã raposa e o irmão lobo ou o irmão fogo... a voltar àquele primeiro tempo em que o leão convivia fraternalmente com o cordeiro. Um dom raríssimo.

Expedição ao Polo Sul

Compaixão podia ser o título do documentário. Entre os momentos festivos de uma natureza esplendorosa e os efeitos nefastos de actos perversos, é evidente o respeito imenso que a vida inspira a Salgado. Da mesma forma que não precisa de confirmar que as fotografias com as agressões contra a humanidade foram regadas a lágrimas! O rosto sulcado de linhas fundas e o olhar faiscante e límpido com que nos encara do outro lado do ecrã têm as marcas inconfundíveis de quem chorou ao lado e em nome de todos os que deixaram de poder chorar. Talvez por isso, uma boa percentagem do seu álbum penetra-nos na alma, provocando uma comoção que não irrompe só do assombro pela Beleza maior que contêm. Aquelas imagens das gentes anónimas que povoam a Terra surgem envoltas numa aura sagrada, que suscita uma reverência infinda. No final, apetece cantar com Louis Armstrong what a wonderful world.


Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA

Título original:
LE SEL DE LA TERRE (The salt of the earth)
Título traduzido em Portugal:
O SAL DA TERRA
Realização:
Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado
Argumento:
Wim Wenders, Juliano Ribeiro Salgado e David Rosier
Produzido por:
David Rosier, Lélia Wanick Salgado e Andrea Gambetta
Produção:
Amazonas Images, Decia Films, Fondazione Solares Delle Arti
Directores de Fotografia:
Hugo Barbier e Juliano Salgado
Música original:
Laurent Petitgand
Duração:
110 min.
Ano:      
2014
País:
Brasil e França
        Elenco:

Sebastião Salgado
Leila Salgado
Juliano Ribeiro
Wim Wenders
Local das filmagens:

o mundo


 


                     Premiado em Cannes na mostra “Un Certain Regard”, 2014.

1 comentário:

Anónimo disse...


Agradeço o texto apelativo que me motiva a ver o documentário e a exposição.

É tão grande o privilégio de habitarmos este magnífico planeta, que infelizmente se confunde tudo e o ser humano pensa-se seu dono e carrasco.

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