Nada no nosso corpo físico deve ser descurado, e é por isso que levamos vidas maçadoramente saudáveis, nos agitamos ao som de uma necessidade de arejamento da mente ou de uma obrigação de abate de peso. Protegemos o baço, o fígado, os pulmões ou o coração - este enquanto músculo, que enquanto coisa diversa o assunto fia mais fino. Não queremos inimigos internos com sinais de impaciência. Uma vesícula irritada ou uns rins incomodados são uma maçada que nos persegue como uma dívida fiscal. Faço o mesmo com a memória: não a posso controlar, e é impossível apor-lhe no frontispício uma placa com o fatal reservado o direito de admissão. Assim sendo, todas as minhas memórias são por definição pacíficas, porque não quero que sejam um inimigo interno que não vencerei jamais. Tenho uma memória demasiadamente forte para que seja minha adversária.
Vem este intróito críptico - ou apenas maçador - a propósito da morte daquele que o país artístico conheceu como D. Vicente da Camara e que eu, por via das circunstâncias familiares e sociais, conheci de outra forma. Convivemos durante 45 anos, talvez, porque ele era o Pai de pessoas que me foram muito importantes, o co-anfitrião das férias que foram as melhores da minha vida, se tirarmos todas as outras férias que foram, também elas, as melhores da minha vida.
Nalguns aspectos olho muito pouco para o futuro, que é imprevisibilidade com a qual nem sempre saberei o que fazer, até porque desconheço em que moldes me aparecerá. No fundo, domino muito pouco do que serei, pelo que o olhar persistente sobre o horizonte foi chão que deu uvas. Tenho desejos para os dias de amanhã, óbvio, mas a minha genica vai toda para o passado - para os vários passados - que constituem as lajes onde assenta a minha vida. Sobre tudo o que é a minha existência - pessoas que surgiram ou desapareceram, episódios felizes ou angustiantes, épocas exaltantes ou chorosas - construo uma memória duradouramente pacífica e pacificadora. Não abati nada ao efectivo: um amigo, uma música, uma rapariga que me disse que sim ou que não, um olhar nebuloso sobre um equipamento de hospital, a sombra dos plátanos num adro setembrino, a devoção aos anjos, as honórias que só eu sei. Guardo tudo, porque sou um bric-a-brac onde a inutilidade se junta ao fundamental.
Lembrar-me de quem partiu inesperadamente este sábado é lembrar-me de muito mais do que cabe aqui neste estabelecimento. Não a lembrança dele, específica e exclusivamente, mas a lembrança dele com tudo o resto: os amores inocentes e apertados de verão, as primeiras amizades duradouras, a compota de amoras, as ferraduras comidas numa ilegalidade que a fome vencia, o passeio de santo antónio e um menino jesus vivo com quase hálito de cigarro escondido, as luzes persistentes de bencatel, a sopa de beldroegas ou de cação que eram delícias exclusivas de um sítio e de um tempo.
Toda a minha vida é feita de camadas verticais que se alimentam das que são horizontais. O que sou hoje está construído sobre espaços que são as minhas memórias, mesmo que sejam partidas sem retorno. Não tenho cemitérios, não tenho campos de guerra, não tenho prisões onde se cumpriram ou cumprem penas. O que sou hoje assenta naquilo que fui ontem e anteontem, com todos os cheiros, seres vivos, paisagens, sons, beijos dados e recebidos, toques subtis de mãos adolescentes. Por mais irónico que possa parecer, com o desaparecimento de sábado não desaparece nada. Num momento fugaz de infantilidade surgiram-me como nunca anos felizes, imensamente felizes - talvez mesmo os mais felizes, se tirarmos todos aqueles que também foram os mais felizes que vivi, noutros sítios e com outras pessoas.
Sou um superlativo das minhas memórias, até porque é delas que vivo. Se não fossem tão boas seriam apenas uma maldição.
JdB